- O Globo
Escolhas e decisões do presidente Bolsonaro não são apenas ofensivas, revogam a razão pela qual os órgãos, setores e ministérios foram criados
Ocaso da escolha para a Fundação Palmares supera em muito a questão ideológica e é bem mais do que afronta ao movimento negro. Quem acha que a escravidão foi boa para os descendentes atuará contra os objetivos estabelecidos na lei que criou a Fundação Palmares. O governo Bolsonaro está seguindo neste caso o mesmo padrão de outras escolhas. O ministro do Meio Ambiente é antiambiental, o da Educação é mal-educado e ataca educadores, o de Relações Exteriores fere regras básicas da diplomacia, o secretário de Cultura é antagônico à Cultura, a ministra da Mulher defende a submissão aos maridos.
Há limites para o desencontro entre os nomeados pelo governo e a vocação dos cargos que ocupam. Esses limites estão sendo ultrapassados em atos diários. No caso da Fundação Palmares o absurdo foi tão longe que se transformou em ilegalidade. E cabe ao país se perguntar, talvez na Justiça, se pode um ocupante de cargo público ter sido escolhido exatamente porque tem convicções opostas aos dos princípios estabelecidos na lei de criação do órgão.
Sérgio Nascimento Camargo já disse que o racismo não existe, que a escravidão foi benéfica para os descendentes e que o movimento negro precisa ser extinto. Claro que ele não conseguirá. Mas a ameaça de “extinção” de um movimento social legítimo é inaceitável. O fato de Camargo ser negro não o autoriza a fazer declarações racistas, como “a negrada daqui reclama porque é imbecil”, escrita por ele na rede social em 15 de setembro, segundo levantamento feito pelos repórteres Jussara Soares e Daniel Gullino, do GLOBO. As ofensas listadas pelo jornal são inúmeras. Ele certamente seguiu o caminho que qualifica para ser nomeado pelo governo Bolsonaro. Não precisa ter mostrado qualquer aptidão administrativa ou ter currículo na área. Precisa ser capaz de ofender, atacar, difamar, espalhar o ódio nas redes. Mas o que o país tem que se preocupar é a partir de que ponto as nomeações são ilegais e os nomeados cometem crimes. As leis que criam órgãos públicos estabelecem finalidades. A da Fundação é “promover os valores culturais, sociais e econômicos da influência negra na formação do povo brasileiro”. Quem parte do elogio às consequências da escravidão está em conflito com a lei. Quem se refere a um grupo de brasileiros como “negrada” comete crime de racismo.
Há graus de inadequação ao cargo e em alguns casos isso fica superlativo. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, tem um comportamento nas redes sociais que ofende os mais elementares princípios do decoro. Ele é indecoroso. Mas mesmo que isso fosse tolerável, seu desempenho, como demonstrou a comissão da Câmara dos Deputados, coloca em risco os objetivos e a missão do Ministério da Educação. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, quando se reúne com desmatadores, grileiros ou garimpeiros estimula crimes contra o meio ambiente. O Itamaraty tem a finalidade de defender e fazer crescer a presença do Brasil no cenário internacional. O ministro Ernesto Araújo, ao elogiar e criticar países pela ideologia do governo de ocasião, ameaça reduzir a presença e fazer o oposto da missão do cargo que ocupa. A política externa tem que ser universal.
Escolhas e decisões do presidente Bolsonaro não são apenas ofensivas. Revogam a razão pela qual os órgãos, setores e ministérios foram criados. Mas é preciso saber qual é a fronteira entre erros e atos ilegais. Criticar a imprensa é absolutamente normal, todos os governos o fazem. Mas quando o presidente diz que baixou uma Medida Provisória para quebrar o jornal “Valor”, ou quando ele exclui a “Folha de S. Paulo” da lista de veículos exigidos para a oferta de clipping à Presidência e, pior, ameaça os anunciantes do jornal, Bolsonaro está ferindo princípio constitucional da liberdade de expressão.
O presidente Bolsonaro tem convicções autoritárias apesar de exercer um cargo para o qual foi escolhido democraticamente. Ele tem levado seu autoritarismo para a administração. É importante que o país esteja atento à fronteira entre os erros de um governo ruim e as afrontas às leis, os ataques à Constituição. As instituições e os mecanismos de freios e contrapesos da democracia precisam estar alertas, em cada ato, à distinção entre o que é apenas inépcia e o que é ilegal e inconstitucional. Antes que seja tarde.
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