- O Globo
Tentativa de censura foi fortemente rechaçada pela Bienal do Rio, que está sendo espaço da resistência cultural e literária
A censura tem surgido com frequência nos eventos literários do país. Não por acaso. Os livros sempre pareceram ameaçadores a mentes autoritárias e em tempos de intolerância. Ceder a quem tenta cercear o caminho entre o leitor e o livro é aceitar que um perigoso inimigo da liberdade ganhe corpo. A prefeitura do Rio mandou agentes da “ordem pública” vasculhar a Bienal atrás de material “impróprio” e que não seguisse as “recomendações”. As palavras aspeadas podem ter qualquer sentido, a ser dado por quem se considera com autoridade de decidir o que é próprio, recomendável e ordem pública. A literatura é o terreno da liberdade. As duas palavras nasceram juntas. São irmãs.
A Bienal do Rio decidiu resistir, inclusive com um mandado de segurança preventivo e uma nota que lembra de que lado estão as leis. As editoras também reagiram. Neste momento, há vários motivos para resistência: estagnação, crise na indústria do livro, dificuldades das empresas, pressões diretas ou subliminares que outros eventos literários têm recebido para banir autores e temas. Nos dez dias que terminam hoje à noite, a grande festa do livro vem tratando das questões que são parte da vida contemporânea. Autoritarismo e democracia, escravidão, racismo, imigrantes e refugiados, LGBT, feminismo, indígenas, Amazônia, censura. “A Bienal entende que sua missão principal é a difusão da leitura no Brasil”, disse Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Decisiva missão nesta hora e lugar.
Alguém pode dizer que está havendo exagero, porque apenas uma revista em quadrinhos foi diretamente ameaçada. Ray Bradbury, autor do consagrado “Fahrenheit 451”, nos avisa, à moda de Bertolt Brecht, que depois de um veto virá outro. “Eles começaram controlando gibis, depois livros de detetives e, claro, filmes, sempre em nome de algo distinto: as paixões políticas, o preconceito religioso, os interesses profissionais; sempre houve uma minoria com medo de algo, e uma maioria com medo das trevas...”
Goethe, velho defensor da luz, disse que “nada é mais ameaçador do que a ignorância ativa”. Ela está em plena atividade no Brasil de hoje. Quem promove eventos literários, culturais, quem produz filmes, quem se dedica à arte sabe que a censura tem se infiltrado por caminhos oficiais e particulares. Existe a proibição explícita, a intimidação virtual, a ameaça física, a suspensão de patrocínios, a tentativa de banir temas.
Lançado nesta Bienal, o primeiro livro da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes, não podia ter chegado em melhor hora. “A escravidão é uma chaga aberta na história humana”, escreveu na obra que abala o leitor e o leva a uma reflexão profunda sobre o Brasil. A mesma que o país tem evitado por tanto tempo através dos ardis da negação. Mesmo negado, aqui está o racismo no cotidiano e nas sequelas visíveis da escravidão. Num debate na Globolivros, um leitor perguntou a Laurentino se o negro está livre do açoite hoje em dia. Na mesma semana, o Brasil viu um adolescente sendo açoitado por dois seguranças de um supermercado. Por que ainda carregamos tantas marcas deste longo crime? Por termos fugido do necessário debate, sugerido por Joaquim Nabuco, sobre as políticas para desmontar a obra da escravidão.
Aplaudido de pé no Café Literário, o líder indígena Ailton Krenak foi também ao meu programa na Globonews para falar do seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Com leveza, ele defende ideias profundas, como a da existência de “um colapso afetivo” dos brasileiros na relação com os rios e as florestas. Ailton, dos Krenak, nascido às margens do Watu, o ferido Rio Doce, lembra que a natureza e nós somos uma coisa só. Não há dualidade entre a humanidade e a Terra.
A leitura é a forma mais efetiva de pensar. E pensar sempre parece perigoso às formas autoritárias de poder. “Qualquer livro que merece ser banido é um livro que merece ser lido”, escreveu o grande autor de ficção científica Isaac Asimov. A censura sabe o que faz, ela quer inibir o pensamento. A literatura também sabe o que faz. Ela atua na ampliação do espaço democrático, na difusão das ideias, na representação das emoções, na defesa da liberdade criativa. O dramaturgo e crítico irlandês George Bernard Shaw escreveu que “a censura se completa logicamente quando a ninguém é permitido ler qualquer livro, exceto os livros que ninguém lê”. Ler é inquietante, é libertário.
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