- Revista Época
Quanto mais pessoas acreditarem que a empregada deveria se esforçar mais para não receber o Bolsa Família, mais as políticas de redução de pobreza e redistribuição de renda serão rechaçadas
Lembram-se do gato de Schrödinger? Trata-se de uma alegoria sobre o aparente paradoxo da superposição quântica, em que um gato hipotético pode estar morto e vivo ao mesmo tempo. Portanto, duas realidades contraditórias existem simultaneamente até que um observador determine em qual delas está — na realidade do gato morto, ao observar o cadáver, ou na realidade do gato vivo. Antes de o observador determinar qual realidade haverá de se impor para ele, as duas realidades são igualmente prováveis para aquele indivíduo particular ainda que sua experiência real seja única.
Tenho pensado sobre os paralelos entre o estranho mundo da física quântica e o igualmente estranho mundo da política e da economia. Por exemplo: no Brasil, hoje, há muita gente que rejeita o programa Bolsa Família por considerá-lo — colocando de forma crua — uma medida que alimenta a preguiça dos que recebem o benefício, eliminando o incentivo de encontrar formas de sustento que não dependam do Estado.
O governo parece compartilhar dessa visão diante das notícias de que milhões de pessoas deixaram de receber o benefício recentemente, ou padecem em longas filas para recebê-lo. O problema reside no fato de que há pessoas que, ao mesmo tempo, compartilham da visão do ministro da Economia de que “há muita empregada doméstica indo para a Disney”. Qual o paradoxo? Ora, se tantas empregadas viajam para o exterior, dificilmente o fazem com o exíguo benefício do Bolsa Família — mas muitas são beneficiárias do programa. Eliminando, portanto, a hipótese anacrônica de que recebam o Bolsa Família por necessidade e viajem para a Disney, eis a empregada de Schrödinger: aquela que viaja para a Disney e não viaja para a Disney ao mesmo tempo.
A empregada de Schrödinger veio para mim não só como inspiração devido à fala do ministro, mas pela leitura de um paper recente de Alberto Alesina, Armando Miano e Stefanie Stantcheva intitulado The polarization of reality e publicado em janeiro desse ano pelo NBER (Bureau Nacional de Pesquisa Econômica, na sigla em inglês). Nesse estudo, os autores discorrem sobre a polarização da realidade, isto é, a situação em que as pessoas têm diferentes percepções de uma realidade que pode ser constatada ou observada a partir de fatos verificáveis.
Para ilustrar o fenômeno que investigam, os autores descrevem o “imigrante de Schrödinger”, aquele que é um estorvo por estar desempregado, mas que rouba seu emprego. Porém, uma vez observado, ou ele está desempregado ou ele desfruta de seus afazeres profissionais após sua demissão. A revelação de que as duas realidades podem continuar a existir na cabeça de algumas pessoas é espantosa. Não só isso, ela tem claras implicações para a política migratória: quanto mais pessoas abrigarem duas realidades contraditórias em sua cabeça, maiores as chances de que a política migratória reflita escolhas que inibam a imigração — mesmo quando ela é inequivocamente benéfica.
Volto à empregada. Quanto mais pessoas acreditarem que a empregada deveria se esforçar mais para não receber o Bolsa Família, sobretudo porque estão viajando para a Disney aos montes, mais as políticas de redução de pobreza e redistribuição de renda serão rechaçadas. O repúdio respaldará a decisão do governo brasileiro de ignorar os imensos problemas de mobilidade social e acesso aos serviços básicos de boa parte da população brasileira.
Os autores do estudo mencionado conduziram um experimento para testar a maneira como as pessoas processam a realidade. Sem distinguir o posicionamento ideológico, indivíduos foram postos em dois grupos. O primeiro grupo teve acesso a diversos dados sobre desigualdade e a redução do grau de mobilidade social nos EUA, enquanto o outro grupo não teve acesso a essas informações. Em seguida, todos foram perguntados sobre a capacidade de uma pessoa pobre alcançar níveis de renda mais elevados por meio de seu próprio esforço. Os membros do primeiro grupo mostraram-se inequivocamente mais pessimistas do que os do segundo. Contudo, no segundo grupo, pessoas mais à esquerda do espectro político revelaram-se substancialmente mais pessimistas do que pessoas à direita.
A empregada de Schrödinger apresenta paradoxos à política econômica que talvez só possam ser resolvidos pelo velho cara ou coroa. Talvez baste o lançamento de uma moeda de R$ 1, no lugar do salário de R$ 31 mil de um ministro.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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