- O Globo
Rosto severo, raivoso, Salvini projetou-se como arauto da moralidade e da xenofobia, destilando ódio aos estrangeiros
Na política italiana surgiu um ser inesperado. Humilde, discreto e silencioso como costumam ser os pequenos peixes: a sardinha.
A ideia de jogá-la às águas surgiu na cabeça de alguns jovens adultos, todos com cerca de 30 anos: Mattia Sartori, formado em Ciência Política; Andrea Garreffa, diplomado em Comunicação, guia turístico; Giulia Trappolini, fisioterapeuta e professora de dança, e Roberto Morotti, engenheiro, especializado no tratamento de lixo plástico.
Tratava-se de enfrentar o líder da extrema direita, Matteo Salvini, considerado imbatível. Há mais de um ano, lidera as pesquisas como o político mais popular do país. Seu partido, a Liga, foi o mais votado nas recentes eleições europeias e ganhou oito das últimas nove eleições regionais. Rosto severo, raivoso, Salvini projetou-se como arauto da moralidade e da xenofobia, destilando ódio aos estrangeiros, apostrofando o “sistema”, insultando e intimidando adversários. Caras, bocas e mímica de um outro “salvador da pátria”, um certo Benito Mussolini.
Em fins do ano passado, Salvini resolveu ganhar as eleições na Emília-Romanha, governada por lideranças de esquerda desde 1945. Escolheu a senadora Lucia Borgonzoni como candidata, mas ela seria apenas um biombo. Ele mesmo é quem chefiaria a campanha, pontificando nos comícios, aparecendo em toda a parte, um rolo compressor estridente, ameaçador. Seu opositor, Stefano Bonaccini, do Partido Democrático (ex-Partido Comunista da Itália), que tentava a reeleição, parecia temeroso, encolhido. As pesquisas registravam que seria uma eleição muito difícil.
Mattia, Andrea, Giulia e Roberto, amigos de repúblicas estudantis, resolveram topar a parada e fazer tudo ao contrário do que seu mestre mandava: em vez de partidos, desprestigiados, um movimento social, cívico, mas nada apolítico, ao contrário, com claras críticas às direitas e à extrema direita, e com opções definidas pela esquerda e pela democracia; às doações empresariais, preferiram financiamento através da internet; em vez de bandeiras épicas e de cores berrantes, o símbolo modesto da sardinha; no lugar de insultos e xingamentos, uma linguagem polida, educada e cordial; em vez do nacionalismo agressivo, a mão amiga aos imigrantes; ao invés de celebrar alguém, lutar por coisas sensíveis, concretas; contra aquele tubarão voraz, os pequenos peixes. Nas praças, debaixo da chuva e sentindo frio, se apertariam uns aos outros, e haveriam de sentir calor, como nas latinhas de metal.
Apostaram alto. Salvini marcara um comício de “arromba” para lançar sua campanha, em 14 de novembro, no Palácio dos Esportes de Bolonha, um lugar para seis mil pessoas no máximo. Eles convocaram uma contramanifestação na mesma cidade, na Piazza Maggiore, com capacidade para sete mil pessoas. Vieram 13 mil. Houve poucas falas, muita música e congraçamento. Nenhum insulto. Os oradores anunciavam: “Sardinhas, bem-vindas ao mar aberto”. Daí a quatro dias, para aporrinhar — e ofuscar — um outro comício de Salvini, sete mil iriam atrás dele na pequena Modena — e roubariam as manchetes do dia. Os pequenos peixes tomaram gosto: em duas semanas houve cerca de 50 manifestações por todo o país, de Milão, ao norte, a Palermo, no extremo sul.
O jogo virou. O povo da Emília-Romanha votou e derrotou Salvini com folga. Um cantor alternativo exclamou: “Nós somos a Itália que se levanta, transmitam a mensagem —nós chegamos”.
A partida está longe do fim. A extrema direita conserva muita força, e Salvini, embora algo chamuscado, ainda dispõe de inegável liderança. Entretanto, Mattia Sartori tem um grão de razão quando diz: “Se fomos capazes de fazer tudo isto só com nossas forças, quer dizer que ainda há esperança”. E irônico: “Será a primeira revolução dos peixes na história”.
Um velho ditado ensina: o destino fica do lado dos ousados. Sabemos que nem sempre é assim. As sardinhas, porém, ousaram e ganharam. “A gente queria que as pessoas críticas saíssem de casa”, explicou com simplicidade Giulia Trappolini. Saíram. E venceram.
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