O leitor tem diante de si um texto expressivo do exemplo brasileiro de um partido revolucionário – o PCB – que se converte em partido da política. Os comunistas do PCB assentaram neste país uma tendência à identificação “sem reservas com o Estado democrático de direito, sem o abandono de objetivos reformistas muito além do status quo”, como propõe Habermas às esquerdas. O PCB caminhou muito nessa direção antes do exílio do Comitê Central de meados dos anos 1970, ocasião em que parte dele intensificaria sua aproximação com essa cultura política de esquerda. Relembremos alguns registros: 1) bem distante, Caio Prado, opondo-se ao queremismo de Vargas, tornou-se conhecido defensor da redemocratização no final do Estado Novo; 2) há textos pecebistas que valorizam o tempo democratizante subseqüente à eleição de JK; 3) as Teses e a resolução do V Congresso de 1960 descrevem cenários de governos reformista-democráticos concretizáveis mediante a política de frente única; 4) em maio de 1965, o PCB aprovou resolução pondo no centro da resistência ao regime militar a defesa das liberdades; e 5) a resolução do Comitê Estadual do PCB da Guanabara, de março de 1970, ora incluída nesta coletânea, é ponto alto nessa evolução.
Esse texto avalia o percurso do regime de 1964, especialmente o novo curso reacionário trazido pelo Ato Institucional n. 5 de 13 de dezembro de 1968. Elaborada para se “ter domínio”, mediante previsão e perspectiva, do terreno sumamente adverso dessa época, a resolução traz uma precisa análise de conjuntura, construída por quem lera os escritos de Marx e Engels sobre a França de 1848 a 1853.[1] O seu redator tanto compreendia bem as observações dos clássicos sobre as formas do Estado Capitalista (republicana, bonapartista) quanto sabia o crucial que era o tema da cena política. Esta última questão sempre desafiou os publicistas revolucionários quando buscavam, na superfície da vida corrente, visualizar a presença do econômico, da determinação “mais estrutural”, dizia-se então, a perpassar maior alcance ao agir imediato e às ações parciais.
Cabe aqui um parêntese para aludir às intervenções de Alberto Passos Guimarães por ocasião do V Congresso de 1960. Este autor extraía do tema da “etapa” um modo especial de conceber a revolução na circunstância brasileira. A distinção das fases revolucionárias – o curto, o médio e o longo termo, este pertencente ao domínio da doutrina – importava numa questão, sustentava Passos Guimarães, decisiva conquanto habilitava o PCB como ator real. Já o publicista de 1970 se impunha este desafio: a partir da caracterização do regime militar enrijecido depois de 1968, divisar, para a conjuntura e o futuro próximo, contornos de movimentos, visíveis e latentes, da(s) cena(s) política(s), indicativos de possibilidades para a ação oposicionista.
Aqui entrava o tema das formas da “dominação estatal de classe” (sic).[2] O publicista presente na resolução de 1970 centralizava sua atenção na “máscara de ferro” (expressão de Werneck Vianna para o Estado Novo) do regime de 1964. Chamá-lo de “fascista” não expressa doutrinarismo, pois não se tomava contorno ortodoxo da conceituação (o fascismo como decorrência o grande capital, imposto à margem da sua história política). Ao contrário, dizia-se na resolução, cifrar as esperanças do fim da ditadura no primarismo (“que vê as esperanças do êxito de uma política revolucionária unicamente no caos e na catástrofe da política econômica das classes dominantes”) só levava à ilusão de uma “derrota fácil” (sic) do regime e ao imobilismo.
O publicista reconhecia que, após o AI-5, a ditadura passara a abafar a vida nacional de modo quase total. No entanto, como falava de um lugar de partido (disposto a agir com eficácia), se fixava no modo como nascera o regime de 1964 e no processo contraditório do seu enrijecimento subseqüente ao AI-5. Daí a leitura dos anos de chumbo feita pelo publicista não conferir “permanência estrutural” à “máscara de ferro” do regime, ante a qual nada se poderia fazer.
Quando chama a fase terrorista da ditadura de “processo de fascistização”, a resolução fixa atenção em dois pontos: a) no “condicionamento” antidemocrático do estrutural (monopolização, contração do mercado nacional, etc.) e no desenvolvimento econômico (a transmitir alguma força ao regime); e b) nas peculiaridades que a montagem do projeto fascista assumia entre nós. Visto dessas duas dimensões, nada garantia que o regime se tornasse uma “contra-revolução permanente”.
Ao contrário, mesmo duríssima, a ditadura caminhava, já então, para a instabilidade enquanto o campo oposicionista tendia a se adensar. Era possível se desenvolver uma luta contra a ditadura em moldes de uma “guerra de posições” gramsciana, com três momentos: a época de resistência (sobremaneira naquela fase terrorista da ditadura), o momento de isolar o regime de abril e, depois, a hora da sua derrota.
Tais cenários traduziam perspectiva de combate à ditadura por meio do único instrumento viável: a política, esfera na qual as possibilidades de atuação do ator sagaz eram bem maiores.
O que permitia essa previsão em hora sombria? O redator da resolução divisava a cena política através de uma atenta interseção entre o econômico (e suas determinações) e a esfera do político-superestrutural (e as muitas iniciativas dos atores). O publicista de 1970 via o “processo de fascistização” a partir da dialética das contradições do regime e das suas crises, sucessivas à medida que a radicalização reacionária avançava. Tal curso, acidentado e complexo, iria dinamizar, com avanços e recuos, o campo oposicionista -- posto no horizonte o objetivo último da formação de uma frente única que venceria a ditadura. O palco decisivo da “guerra de posições” a se armar no curto prazo demandava paciência e grande esforço no agir possível.[3]
Develava-se, assim, o ponto de Arquimedes da resistência antiditatorial. O recurso ao conceito de “processo de fascistização” levava à identificação da fratura incurável do regime. Desde 1964 houve resistência ao avanço reacionário. Já no pleito para governador de 1965, ele foi derrotado em Minas Gerais e no Rio de Janeiro e, em 1967, sentiu-se ameaçado pelas reuniões da Frente Ampla (a convergência Goulart-Lacerda-JK) e as proibiu. A principio, o impulso da oposição tinha epicentro no mundo político, no interior do qual se moviam operadores atentos aos conflitos crescentes do regime com a “velha classe política” (sic). Com o tempo, por entre linhas de insatisfação com os males do regime iria ganhar corpo o espírito da ”rebeldia brasileira”.
O cronista das marchas e contra-marchas daquela radicalização reacionária faz registro acurado. Dizia que o regime de 1964 não havia conseguido organizar base de apoio sólida devido a sua natureza autoritária. E ainda: à proporção que o seu núcleo duro levasse adiante a fascistização mais aliados perderia, sendo obrigado a substituir áreas políticas por quadros tecnocratas, insulando-se cada vez mais. Inteligível, assim, o nexo entre a defesa das liberdades, a atuação nas eleições, mesmo controladas (como disse o sociólogo do Rio de Janeiro aludido, a “forma alta de luta”) e a afirmação do movimento democrático brasileiro.
Aliás, um outro parêntese. O caminho indicado na resolução de 1970 diferia muito daquele que Florestan divisava nos seus escritos quase dessa mesma época. O sociólogo vê cristalizar-se no pós-13 de dezembro de 1968 o processo autocratização completa do sistema político como uma espécie de “lei de ferro” do capitalismo dependente.[4] O texto do PCB da Guanabara não previa um fechamento de horizonte como esse, mas uma larga caminhada, pressuposto o papel da política como meio apropriado, conquistados mais e mais espaços democráticos, para o combate à ditadura. Os comunistas do PCB iriam operar no campo da política com desenvoltura. Naquela hora adversa, perceberam que, sem mobilizar o mundo político existente (o PTB, o PSD; depois o MDB), o caminho à frente se tornava turvo.
O ponto desenvolvido por Passos Guimarães no V Congresso de 1960 será reposto após o AI-5. O publicista de 1970 iria pela contra-mão em relação a vários intelectuais que então falavam do fim próximo do regime de 1964 dado o cenário da economia. Recessivo nosso capitalismo desde os últimos anos de Goulart e inviável novo ciclo econômico, os golpistas de 1964 não teriam fôlego. O que singulariza a resolução de 1970 é justamente a valorização do campo da política, nos anos de chumbo terríveis. Ela tem muita atualidade nestes nossos outros dias de corrosão da política, agora por conta do paneconomicismo anti-popular e anti-institucional.
Referências bibliográficas
Adolfo Sánchez Vázquez, Ciencia y Revolución (El marxismo de Althusser), Grijalbo, México, 1978.
Armênio Guedes, “Introdução” a “Resolução do Comitê Estadual do PCB da Guanabara”, de março de 1970. In: Temas de Ciências Humanas n. 10, São Paulo, 1981.
[1] Em pequena nota à sua republicação (198l), Armênio Guedes revelou ter elaborado o texto da resolução, o qual foi aprovado “por unanimidade na Comissão Política e no Comitê Estadual, praticamente sem qualquer emenda” (cf. Guedes; 1981).
[2] Essa leitura da obra política de Marx já aparece nas Teses do V Congresso. Com proveito, fazia-se neste texto a distinção entre Estado (classe), regime (articulação entre frações de classe) e governo (composição de forças político-partidárias e associativas). Essa construção marcaria, no PCB de 1960, a definição da tática imediata em associação com o objetivo último: alcançar um governo nacionalista e democrático.
[3] Na seqüência da resolução, o Comitê Central aprovou (1971) dois documentos: um, sobre os entendimentos políticos (“nos mais diferentes níveis”) e um outro, registrando a acumulação de ações parciais nas esferas sindical e associativa.
[4] Florestan não dispunha da vantagem, como A. Guedes, de estar situado, por assim dizer, na dimensão da práxis (cf. Vázquez, 1978).
*Raimundo Santos é professor universitário
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