- Valor Econômico (7/4/2020)
Em vez de colocar o mundo numa trajetória significativamente diferente, crise deverá intensificar e reforçar tendências já existentes
As crises acontecem em duas variações: aquelas para as quais não tínhamos como nos preparar e aquelas para as quais deveríamos estar preparados, porque na verdade já eram esperadas. A covid-19 se enquadra na segunda categoria, não importa o que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diga para fugir da responsabilidade pela catástrofe que se desenrola.
Embora o coronavírus por si seja novo e o momento da atual pandemia não pudesse ser previsto, especialistas já reconheciam que uma pandemia desse tipo era possível.
Sars, mers, H1N1, ebola e outras epidemias forneceram um alerta amplo. Quinze anos atrás, a Organização Mundial da Saúde revisou e aprimorou o modelo global de resposta a epidemias, tentando estabelecer falhas percebidas na epidemia de Sars em 2003.
Em 2016, o Banco Mundial lançou uma linha de financiamento emergencial para pandemias para ajudar países de baixa renda em situações de crises sanitárias. Poucos meses antes da covid-19 surgir em Wuhan, na China, um relatório do governo americano alertou Trump sobre a possibilidade de uma pandemia na escala da gripe espanhola, que matou estimados 50 milhões de pessoas no mundo.
Assim como a mudança climática, a covid-19 era uma crise anunciada. A resposta nos Estados Unidos foi particularmente desastrosa. Trump amenizou a gravidade da crise durante semanas. Quando os contágios e as hospitalizações começaram a disparar, o país se viu seriamente carente de kits de testes, máscaras, ventiladores e outros suprimentos médicos.
Os EUA não solicitaram os kits de teste disponibilizados pela OMS e não conseguiram produzir no começo testes confiáveis. Trump recusou usar sua autoridade para solicitar suprimentos médicos de fabricantes privados, forçando hospitais e autoridades estaduais a se mexer e competir uns com os outros para garantir suprimentos.
Atrasos nos testes e confinamentos também custaram caro à Europa, com Itália, Espanha, França e Reino Unido pagando um preço elevado. Alguns países do leste da Ásia responderam muito melhor. Coreia do Sul, Cingapura e Hong Kong parecem ter controlado a disseminação da doença com uma combinação de testes, rastreamento e políticas rígidas de quarentena.
Contrastes interessantes também surgiram dentro dos países. No norte da Itália, o Veneto saiu-se muito melhor que a Lombardia, graças em grande parte à aplicação mais ampla de testes e uma imposição precoce de restrições a viagens. Nos EUA, os Estados de Kentucky e Tennessee informaram os primeiros casos da covid-19 com diferença de um dia. No fim de março, Kentucky tinha apenas um quarto do número de casos do Tennessee, porque o Estado agiu muito mais rapidamente para declarar um estado de emergência e fechar as repartições públicas.
Na maior parte, porém, a crise vem se desenrolando de maneiras que poderiam ter sido antecipadas pelo caráter prevalecente da governança em diferentes países. A abordagem incompetente, atabalhoada e exibicionista de Trump à gestão da crise não poderia ter sido uma surpresa, por mais letal que tenha sido. Do mesmo modo, o igualmente presunçoso e inconstante presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, continuou, exatamente como se esperava, minimizando os riscos.
Por outro lado, não deveria ser nenhuma surpresa o fato de que os governos que responderam mais rapidamente e mais eficientemente são os que ainda gozam de uma confiança pública significativa, como nos casos da Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan.
A resposta da China foi tipicamente chinesa: supressão de informações sobre a prevalência do vírus, alto grau de controle social e uma mobilização maciça de recursos assim que a ameaça ficou clara. O Turcomenistão proibiu a palavra “coronavírus”, assim como o uso de máscaras em público. Viktor Orbán da Hungria aproveitou a crise para aumentar seus poderes, desfazendo o parlamento após conceder a si mesmo poderes emergenciais por tempo indeterminado.
A crise parece ter evidenciado mais as características dominantes da política de cada país. Na verdade, os países tornaram-se versões exageradas de si mesmos. Isso sugere que a crise poderá acabar se mostrando um divisor de águas na política e na economia mundial menor do que muitos vêm afirmando. Em vez de colocar o mundo numa trajetória significativamente diferente, ela deverá intensificar e reforçar tendências já existentes.
Momentos importantes como a atual crise produzem seu próprio “viés de confirmação”: deveremos ver no debate sobre a covid-19 uma afirmação de nossa própria visão de mundo. E poderemos perceber sinais incipientes de uma futura ordem econômica e política que há muito desejamos.
Portanto, aqueles que querem mais governo e bens públicos terão muitos motivos para pensar que a crise justifica suas crenças. E aqueles que são céticos com o governo e condenam sua incompetência, também terão suas visões prévias confirmadas. Aqueles que querem uma maior governança global defenderão que um regime público e internacional de saúde poderia ter reduzido os custos da pandemia. E aqueles que buscam Estados-nação mais fortes apontarão para as muitas maneiras como a OMS parece ter administrado mal sua resposta (por exemplo, aceitando passivamente as ações da China, opondo-se às proibições de viagens e posicionando-se contra o uso das máscaras).
Em resumo, a covid-19 poderá muito bem não alterar - e muito menos reverter - tendências que eram evidentes antes da crise. O neoliberalismo continuará no caminho de sua morte lenta. Autocratas populistas ficarão ainda mais autoritários. A hiperglobalização continuará na defensiva, com os Estados-nação reclamando espaço político. A China e os EUA continuarão em sua rota de colisão. E a batalha nos Estados-nação entre oligarcas, populistas autoritários e internacionalistas liberais vai se intensificar, enquanto a esquerda luta para criar um programa que desperte a atenção da maioria dos eleitores. (Tradução de Mário Zamarian)
*Dani Rodrik, professor de Política Econômica Internacional da John F. Kennedy School of Government da Universidade Harvard, é o autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.
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