- O Estado de S.Paulo
Berrar instruções para a morte é querer companhia para plano de extinção pessoal
Um mal-assombrado uso do poder nos dilacera: isolamento voluntário de todos ou solução final para a velhice. A esse delírio absurdo e não cristão soma-se a perda de contexto da missão fiscal na economia, deixando a cartilha liberal sem norte para fazer o que precisa.
Uma parada global sincronizada, um governo incapaz de estabilizar suas ações. A confusão alucinatória do presidente, fustigando sem pudor seu ministro da Saúde, estressa mais ainda o cenário e pode levar o Brasil a ser o maior perdedor entre os emergentes. Enquanto o palácio boicota a Nação, o povo ainda encontra temperança, seguro de que nenhum princípio humano ou ético é violado pelo Ministério da Saúde ou pelos governadores.
Itamar, maduro e experiente, custou-lhe tanto a acreditar no Real que o ministro da Fazenda virou o autor do plano, salvando o País da inflação. Jair, o verde, despreza tanto a doença que o ministro da Saúde é que vai salvar o País da infecção. Mandetta, a URV do coronavírus, é mais do que governo. Virou ministro da República.
Lançando sombras sobre o País, parte do governo parece mais agarrada à bolsa do que à vida, convicto de que saúde pública atrapalha a economia. Viúvas do mundo velho, não conseguem realizar o luto pela morte que o vírus impôs ao estilo de vida moderno. Stop. A vida parou, ou foi o presidente? Antifuturista, martirizado pela desinformação, finge governar.
A democracia é forte, mas não é um regime de força. Confunde quem trabalha com expectativa falsa e não consegue agir certo diante de dificuldades. Que governante se mantém à tona sugerindo que o bombeiro salve os móveis e deixe a família se queimar? Acreditar nele é como segurar água na mão. Com atrevimento diz sem pensar o que pensa. Está virando o nome do desastre. Schettino, Schettino, não abandone o navio na hora do naufrágio!
Não é difícil manter a democracia em situações de emergência. Mas que trauma leva o presidente a se identificar tanto com esse vírus a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo? Quem sabe o Centro de Inteligência do Exército de Agulhas Negras o alerte para o que dizem os modelos estratégicos de enfrentamento de populações abandonadas e em pânico. Não é em todas as situações que o homem escolhe sua saída.
Não é fácil conciliar democracia e emergência quando a situação exige mais cérebro e sentimento do que desejo e força. O método de convencimento democrático, pelo isolamento voluntário a pedido da autoridade sanitária, é o melhor para conter a doença. Ajuda, ainda, na preservação do tempo de esperança e solidariedade capaz de soerguer a sociedade depois da desgraça.
Para isso é preciso abandonar qualquer fraude no comportamento. O que houve no mundo foi mais do que uma parada repentina tirando a liquidez dos mercados. Diante da inadimplência geral, e vendo a riqueza sem movimento, a autoridade que não considera o PIB um conceito de fluxo, e não gosta do papel do Estado, sente-se catatônica.
A espiral negativa quando atinge o capital e o trabalho tem de ser amenizada prontamente pelo Estado, recalibrando sua relação com a base fiscal e monetária. O ultraliberal, não podendo ser dogmático, sente-se um insincero titular do poder. Não é burocracia, é a filosofia a razão da demora em estancar a infecção na economia.
É hora da união, de os estadistas de todos os setores afirmarem que é desaconselhável romper o isolamento e obrigatório o Tesouro impulsionar a salvação do País. Por que na emergência a economia se desmancha? Que país é esse que supõe que a vida humana vale menos do que dois meses de produção econômica? Se não há uma base existencial mínima de entendimento, fiquemos com a principal: se somos uma democracia, não precisamos usar a força.
Não é preciso abrir o embrulho para ver o que contém. O universo paralelo do presidente se desfez com a pandemia. Eleito pelo modelo mental virtual, por onde não passa nenhuma privação, ele se virava com retórica, sem ligar para autoridade. Agora o cálculo estratégico que opera, ao jogar com o vírus imaginando não quebrar a cara, parte da ideia de que o Brasil sofre, mas não morre. O ponto de equilíbrio surgirá quando as instituições democráticas o convencerem de que não há necessidade de o País todo sofrer, talvez ele, mantida sua prerrogativa de falar pelos cotovelos.
Há atletas a quem a camisa pesa. Outros, cansativos, acionam uma necessidade de atenção maior do que a que podemos dar. Imaginem estado de calamidade, tendo de suportar coexistência e hierarquia com um governo que se esfrangalha ali onde a fantasia se choca com a realidade.
O mundo intrapsíquico de quem vê a política como jogo trapaça-charlatão-sabichão não prevê desmoralização. Mas se diante do nada até a incompetência costuma ser aceita, quando há necessidade de comando e controle profissional não adianta falar mais alto. Concepções vagas de como governar no temporal podem não corroer os ossos da raiva. Mas berrar instruções para a morte é querer companhia para um plano de extinção pessoal.
*Sociólogo.
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