O Estado de S. Paulo
Se não há uma verdadeira política liberal
no atual governo, é porque não há nenhuma vontade de que isso aconteça
O ambiente político está cada vez mais bisonho. Fala-se de um suposto embate entre conservadores e liberais no atual governo, como se lá existissem no sentido estrito do termo. Segundo esta versátil narrativa, adaptável segundo as circunstâncias, o presidente e os seus ministros se eximem de qualquer responsabilidade, como se nada fosse de culpa deles, tudo sendo sempre atribuído a outros. Podem ser o “sistema”, o “establishment”, o “comunismo” ou qualquer outra bobagem do mesmo tipo. Na verdade, se não há uma verdadeira política liberal no atual governo, é porque não há nenhuma vontade de que isso aconteça. Não corresponde à ideologia e aos interesses que o presidem.
A ideologia bolsonarista e as atitudes do
presidente são orientadas pela definição da política, elaborada por Carl
Schmitt, teórico do nazismo, em seu livro O Conceito do Político, como sendo o
campo do enfrentamento entre amigos e inimigos. Há sempre a necessidade de um
inimigo, qualquer que seja, real ou fictício, que deve ser eliminado, nos casos
extremos pela morte do oponente. O outro é sempre responsável pelos fracassos
presentes, devendo, por isso mesmo, ser eliminado, seja simbolicamente, seja
fisicamente. Segundo essa concepção, o governante deveria estar continuamente
designando um inimigo a ser abatido, podendo ser o sistema, os judeus, os
negros, os homossexuais, a burguesia, os reacionários, e assim por diante.
Notese, ainda, que tal conceitualização do político não é própria somente da
extrema direita, mas também da esquerda, como frisado pelo próprio autor,
quando, nos anos 70 do século passado, elogiava Lenin e Mao por terem formulado
e aplicado a mesma definição. Ela está, assim, presente nas políticas
bolsonarista e petista, quando esta última pauta suas ações pelo “nós contra eles”
e pelos “progressistas contra os reacionários”.
Tal enfoque faz, inclusive, com que os
fatos sejam totalmente ocultados e deformados, pela simples razão de que devem
se enquadrar em tal concepção. Ainda recentemente, recorre-se ao discurso de
que as privatizações não foram feitas de acordo com o prometido, numa
estapafúrdia cifra de R$ 1 trilhão, porque haveria uma “social-democratização”
do Estado brasileiro. Ora, o governo que mais privatizou na história recente do
País foi o dos social-democratas, o do governo Fernando Henrique Cardoso, com
um enorme sucesso, mudando os rumos do País. Ou seja, os social-democratas
foram liberais, enquanto a extrema direita no poder mantém posições estatistas,
além de atentar contra o funcionamento democrático das instituições.
O liberalismo, por definição, é uma
filosofia política fundada num complexo sistema de liberdades. O liberalismo
político está calcado na separação de Poderes, no Estado Democrático de
Direito, na tolerância religiosa, no secularismo, na propriedade privada, na
economia de mercado e no respeito às liberdades individuais e aos direitos
humanos. Um dos seus principais postulados reside na democracia e no
consequente imperativo de restrição da ação do Estado sobre os indivíduos. Em
suas acepções política e econômica, está alicerçado na liberdade de escolha,
individual e empresarial, construindo a partir dela um Estado democrático de
direito, baseado no respeito aos contratos. Em sua história, o liberalismo
chega a se confundir com o processo de criação de um Estado submetido a regras
e uma sociedade esclarecida.
A ideia de conservadorismo está voltada,
por sua vez, à conservação de um determinado estado de coisas, de uma tradição.
Tal definição implica, naturalmente, que o conservadorismo varie muito de país
a país em virtude dos diferentes contextos de cada nação. Contudo, uma
definição universalizável se mantém em praticamente todas as experiências
conservadoras: a defesa de um desenvolvimento gradual do tecido social graças a
uma evolução administrada e lenta da sociedade, da economia e da política,
assim bloqueando qualquer radicalismo político. Na tradição britânica, o
conservadorismo está associado diretamente à preservação das instituições
parlamentaristas, dos valores da tradição política e do respeito ao rule of
law.
À luz dessas distinções, torna-se ainda
mais difícil situar o governo Bolsonaro, seja como liberal, seja como
conservador. Atenta sistematicamente contra as instituições e à separação dos
Poderes, conduz uma política obscurantista de combate à pandemia, negando a
ciência e os seus resultados. O presidente não demonstra nenhuma compaixão para
com o próximo, ironizando a sorte dos mortos e doentes, não tendo jamais
visitado um hospital das vítimas da covid, um anticonservador nesse sentido.
Apresenta-se, ainda, como um “mito”, um líder infalível que fala diretamente
com o “povo”, como se sempre tivesse razão, embora essa possa ser desconhecida
para o vulgo. E ainda prega a irresponsabilidade fiscal, defendendo um governo
que deveria agir sem nenhum tipo de controle. Liberal? Conservador?
*Professor de Filosofia na UFGRS
Um comentário:
Pois é,o governo Bolsonaro não é nem liberal nem conservador,é uma lambança generalizada.
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