segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Denis Lerrer Rosenfield*: Liberais e conservadores

O Estado de S. Paulo

Se não há uma verdadeira política liberal no atual governo, é porque não há nenhuma vontade de que isso aconteça

O ambiente político está cada vez mais bisonho. Fala-se de um suposto embate entre conservadores e liberais no atual governo, como se lá existissem no sentido estrito do termo. Segundo esta versátil narrativa, adaptável segundo as circunstâncias, o presidente e os seus ministros se eximem de qualquer responsabilidade, como se nada fosse de culpa deles, tudo sendo sempre atribuído a outros. Podem ser o “sistema”, o “establishment”, o “comunismo” ou qualquer outra bobagem do mesmo tipo. Na verdade, se não há uma verdadeira política liberal no atual governo, é porque não há nenhuma vontade de que isso aconteça. Não corresponde à ideologia e aos interesses que o presidem.

A ideologia bolsonarista e as atitudes do presidente são orientadas pela definição da política, elaborada por Carl Schmitt, teórico do nazismo, em seu livro O Conceito do Político, como sendo o campo do enfrentamento entre amigos e inimigos. Há sempre a necessidade de um inimigo, qualquer que seja, real ou fictício, que deve ser eliminado, nos casos extremos pela morte do oponente. O outro é sempre responsável pelos fracassos presentes, devendo, por isso mesmo, ser eliminado, seja simbolicamente, seja fisicamente. Segundo essa concepção, o governante deveria estar continuamente designando um inimigo a ser abatido, podendo ser o sistema, os judeus, os negros, os homossexuais, a burguesia, os reacionários, e assim por diante. Notese, ainda, que tal conceitualização do político não é própria somente da extrema direita, mas também da esquerda, como frisado pelo próprio autor, quando, nos anos 70 do século passado, elogiava Lenin e Mao por terem formulado e aplicado a mesma definição. Ela está, assim, presente nas políticas bolsonarista e petista, quando esta última pauta suas ações pelo “nós contra eles” e pelos “progressistas contra os reacionários”.

Tal enfoque faz, inclusive, com que os fatos sejam totalmente ocultados e deformados, pela simples razão de que devem se enquadrar em tal concepção. Ainda recentemente, recorre-se ao discurso de que as privatizações não foram feitas de acordo com o prometido, numa estapafúrdia cifra de R$ 1 trilhão, porque haveria uma “social-democratização” do Estado brasileiro. Ora, o governo que mais privatizou na história recente do País foi o dos social-democratas, o do governo Fernando Henrique Cardoso, com um enorme sucesso, mudando os rumos do País. Ou seja, os social-democratas foram liberais, enquanto a extrema direita no poder mantém posições estatistas, além de atentar contra o funcionamento democrático das instituições.

O liberalismo, por definição, é uma filosofia política fundada num complexo sistema de liberdades. O liberalismo político está calcado na separação de Poderes, no Estado Democrático de Direito, na tolerância religiosa, no secularismo, na propriedade privada, na economia de mercado e no respeito às liberdades individuais e aos direitos humanos. Um dos seus principais postulados reside na democracia e no consequente imperativo de restrição da ação do Estado sobre os indivíduos. Em suas acepções política e econômica, está alicerçado na liberdade de escolha, individual e empresarial, construindo a partir dela um Estado democrático de direito, baseado no respeito aos contratos. Em sua história, o liberalismo chega a se confundir com o processo de criação de um Estado submetido a regras e uma sociedade esclarecida.

A ideia de conservadorismo está voltada, por sua vez, à conservação de um determinado estado de coisas, de uma tradição. Tal definição implica, naturalmente, que o conservadorismo varie muito de país a país em virtude dos diferentes contextos de cada nação. Contudo, uma definição universalizável se mantém em praticamente todas as experiências conservadoras: a defesa de um desenvolvimento gradual do tecido social graças a uma evolução administrada e lenta da sociedade, da economia e da política, assim bloqueando qualquer radicalismo político. Na tradição britânica, o conservadorismo está associado diretamente à preservação das instituições parlamentaristas, dos valores da tradição política e do respeito ao rule of law.

À luz dessas distinções, torna-se ainda mais difícil situar o governo Bolsonaro, seja como liberal, seja como conservador. Atenta sistematicamente contra as instituições e à separação dos Poderes, conduz uma política obscurantista de combate à pandemia, negando a ciência e os seus resultados. O presidente não demonstra nenhuma compaixão para com o próximo, ironizando a sorte dos mortos e doentes, não tendo jamais visitado um hospital das vítimas da covid, um anticonservador nesse sentido. Apresenta-se, ainda, como um “mito”, um líder infalível que fala diretamente com o “povo”, como se sempre tivesse razão, embora essa possa ser desconhecida para o vulgo. E ainda prega a irresponsabilidade fiscal, defendendo um governo que deveria agir sem nenhum tipo de controle. Liberal? Conservador?

*Professor de Filosofia na UFGRS

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Pois é,o governo Bolsonaro não é nem liberal nem conservador,é uma lambança generalizada.