O Globo
Ao velar por sua canção “Com açúcar, com
afeto”, sob o peso da guerra identitária, Chico Buarque acende a fogueira para
o Touro de Bronze.
Soa como lenda, mas é comum no Brasil tão
afeito a realizar copy/paste de qualquer desatino da esquerda norte-americana.
Ali pelo século VI (a.C), o artesão Perilo
de Atenas presenteou o tirano Faláris, de Agrigento, com o Touro de Bronze.
Radiante e pérfido, Faláris pediu a Perilo
que entrasse no interior oco de sua criação, logo colocada sobre uma fogueira.
Para respirar, o escultor buscou ar pela boca do touro —e passou a “mugir” de
dor enquanto era assado.
É uma das mais dramáticas máquinas de
tortura inventadas pelo homem e pode ser vista ainda agora como uma metáfora
para as boas intenções.
Constrange Chico Buarque, poeta a quem se deve reverência, executar em praça pública sua canção “Com açúcar, com afeto” por entender que a letra exalta um cotidiano feminino subjugado, retrato em preto e branco a ser retirado da memória. A canção é universal justamente por não ser arte engajada, como desejam os arautos da guerra identitária.
Ao ceder, Chico corre o risco de jogar à
lama parte de sua obra construída na sintaxe feminina. Rende-se ao mal-afamado
lugar de fala, recurso ideológico forjado para limitar a criatividade dos
artistas, em busca de uma objetividade ou realismo alheio à arte, mas
aparentado da política engajada (que sempre é oportunista).
O Touro de Bronze assará em breve Carolina?
Joana Francesa?
Só que Chico não detém mais direitos
(sentimentais) sobre obras suas que integram a memória cultural. Elas não mais
lhe pertencem. Porque se encontram plasmadas à alma e ao comportamento das
pessoas. Imagine se Vinícius de Moraes abortar “Garota de Ipanema” por ser
convencido de que a letra exalta desejo sexual masculino fora de moda?
Cruz-credo.
Outro exemplo: Chico desiste de sua visão
social e cancela “Construção”, sua obra capaz de ombrear com píncaros de João
Cabral de Melo Neto.
Triste seria.
A expedição de Chico Buarque nos braços da
guerra identitária, ao cair dentro do Touro de Bronze, soa ingênua e desde já
datada. Mais midiática do que política. Busca reescrever a história.
Se o Touro de Bronze ecoa como lenda (Chico
Buarque é visto já como lenda viva?), o ano de 1936 é próximo e está
documentado. Até colorizado.
O poder da política sobre o comportamento,
se ganha eficiência com a invenção de Deus, cada vez mais se vale da indústria
cultural (e das redes sociais) para forjar discursos. Ocorre agora sob as
bandeiras da guerra identitária e fez história em semelhantes embates décadas
atrás. Lá, como agora, a intolerância lancetou mortalmente seus companheiros de
viagem.
Com espírito religioso, levou-se à política
(daí à arte) o pensamento de que só há um Deus e, portanto, apenas uma verdade
é respeitada. Quem julga qual é a verdadeira verdade? É quando assomam os
mortos —Inquisição, gulags…
Boa parte da obra de André Gide começa a
ser reeditada no Brasil. Sua história pessoal serve de paralelo ao mergulho
contemporâneo de Chico Buarque no Touro de Bronze, de que Gide escapou.
Escritor e intelectual francês de esquerda,
referência de civilidade, Gide aceitou convite para visitar a União Soviética.
O ano era 1936, Stálin fazia sua guerra cultural e dominava quase a totalidade
das mentes de esquerda do período. Só que Gide não se contentou ao programa
oficial (números exibidos em PowerPoint etc.) e saiu pelas cidades atrás de
histórias e de impressões da população.
Refinado, independente e intelectualmente
inquieto, não era de obedecer a ordens ou de afinar por ingênua simpatia. Não
era surdo, e assim chocou-se com o que levantou dos crimes de Stálin
—desaparecimento de inimigos políticos, assassinatos, perfídia, o desastre da
industrialização soviética, o Holodomor (o horror, o horror) ucraniano com 5
milhões de mortos.
Ao voltar a Paris, Gide enfurnou-se por
dias em seu apartamento. Escreveria um livro sobre o que viu. Amigos pediram
que não fosse tão sincero — em nome da causa, deveria omitir-se para não dar
argumentos ao avanço da direita. Ou seja, minta.
O escritor deprime-se, mas não cede. Em
1936, chega às livrarias “De volta da URSS”. Claro, é um escândalo. Gide teve
coragem de discordar da opinião geral, onde se encontravam intelectuais
honestos e sinceros, ao lado de sicários pagos por Stálin.
Como reagiram os correligionários de Gide?
Espalharam que um pederasta não deveria ser ouvido.
O que ele anunciou em 1936 só se tornaria
oficial (os crimes de Stálin) em 1956, com o relato de Nikita Kruschev.
Tarde demais. O Touro de Bronze já assara
milhões de companheiros, entre eles seus artistas e muitas obras.
Um comentário:
Legal ele ressaltar o ''lugar de fala'' nas canções feminina de Chico,mas em ''Carolina'',a voz lírica do sujeito é masculina.
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