terça-feira, 31 de maio de 2022

Joel Pinheiro da Fonseca: A politização da Lei Rouanet

Folha de S. Paulo

Condenar um enquanto se ganha quantias superiores é uma grande hipocrisia

Todos as estrelas do sertanejo —e não só elas— devem estar secretamente furiosas com o cantor Zé Neto (da dupla Zé Neto & Cristiano) por ter, numa fala completamente gratuita durante um show, desmerecido artistas que captam recursos via Lei Rouanet (como se fossem menos dignos do que ele) e ainda, a cereja do bolo, feito uma indireta contra Anitta por ter, como todo mundo sabe, feito tatuagem em uma parte bem íntima do corpo.

Em pouco tempo, começaram as investigações. O mesmo artista que desmerece a Lei Rouanet ganha cachês de centenas de milhares de Reais de municípios espalhados pelo país. Se isso não é mamata, o que é?

Outro sertanejo de direita, Sergio Reis, se saiu com esse malabarismo: quando a prefeitura gasta para contratar um show "é dinheiro para o público, não é dinheiro público". Então o mesmo vale para o dinheiro captado por Lei Rouanet! Ele também retorna ao público.

Até existe uma diferença entre Lei Rouanet e gasto público direto, mas no sentido oposto ao apontado por Sergio Reis. A diferença é que, para captar pela Lei Rouanet, o artista tem que fazer projeto, passar por diversos crivos técnicos e prestar contas de cada gasto feito. Além disso, o valor do cachê é limitado. Já o contrato fechado com o município é dinheiro fácil, sem limite legal e sem ter que prestar contas para ninguém.

Ambos são legítimos. Mas um mínimo podemos dizer: condenar o uso da Lei Rouanet ao mesmo tempo em que se ganha quantias muito superiores de dinheiro público sem nenhum tipo de controle e auditoria é uma grande hipocrisia.

Ademais, há uma prática estabelecida no Brasil de se cobrar acima do preço de mercado quando o cliente é o setor público. Cidades pequenas pagando altas somas por shows de grandes estrelas —que trazem um brilho momentâneo mas não deixam nada para o longo prazo— nos faz no mínimo questionar as prioridades do país.

A tentação de politizar tudo isso é muito forte. Afinal, a fala original de Zé Neto era basicamente um discurso político, repisando clichês da direita bolsonarista. É apenas por isso que Lei Rouanet é demonizada e o cachê estatal não.

O alvo da vez, além dele, tem sido o cantor Gusttavo Lima, que tem os cachês mais altos. E ele ser notoriamente bolsonarista não ajuda (embora não me consta que jamais tenha falado mal da Lei Rouanet).

Mas não deixe a sua paixão política colorir seu julgamento sobre esses artistas. Na ausência de maiores provas, é injusto atribuir a eles as possíveis irregularidades das prefeituras que contratam seus shows.

Eles estão fazendo seu trabalho, valem muito mesmo e não se espera que investiguem longamente as contas de cada município que se interessa por um show seu. Anitta também está na lista dos maiores cachês de prefeituras. Ou seja, a prática não tem lado político.

Aliás, embora a indústria do sertanejo seja ligada ao agro, enquanto gênero ele tem sido bem independente. Enquanto no country americano há presença marcante de patriotismo, família, trabalho e valores "conservadores" nas músicas, o sertanejo brasileiro segue fiel à sua trajetória: paixão, juras de amor eterno, términos amargos, bebedeira, desespero, abandono, humilhação e, claro, muita traição.

Por mais que um moralismo persecutório domine os púlpitos e os discursos, a vida brasileira ainda transcorre entregue às paixões, completamente desregrada, e é isso que nossa música reflete. Uma pena que o discurso entre as músicas seja tão maniqueísta.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Saudade do tempo que dupla sertaneja só cantava em circo sem lona,rs.