sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Armando Castelar Pinheiro* - A economia e a felicidade

Valor Econômico

Caminho que as eleições têm tomado, com muita raiva e ódio, não deve ajudar a economia e tende a reduzir o nível de felicidade do país

Lilyhammer é uma de minhas séries favoritas na TV. Ambientada na Noruega, ela mostra uma cultura que conhecemos pouco, de bastante confiança entre as pessoas e nas instituições. Verdade que com muita “criminalidade” também, a parte engraçada da série, e um bocado de neve: para alguém que, como eu, não gosta de frio, nem de dias escuros, dá arrepios.

Talvez por isso, me impressione tanto a liderança dos países nórdicos no World Happiness Report publicado esta semana (worldhappi ness.report/). A Finlândia aparece mais uma vez como o país mais feliz dentre os 146 países analisados, seguida pela Dinamarca e Islândia. A Suécia e Noruega estão na sétima e na oitava posições, respectivamente. O Brasil aparece relativamente bem, na 38ª colocação.

Nesta sua décima edição, o relatório busca aprofundar uma série de questões sobre o tema da felicidade, inclusive a permanente pergunta sobre o que faz as pessoas felizes. Dois temas mais relacionados à economia me pareceram especialmente interessantes: a felicidade como alternativa ao PIB, enquanto métrica de progresso, e como foco das políticas públicas, em lugar do crescimento econômico.

Utilizei o Relatório sobre a Felicidade Mundial pela primeira vez no início de 2020, tentando entender o porquê dos protestos ocorridos em 2019 na América Latina, em especial no Chile, na Colômbia, na Bolívia e no Peru. A explicação mais comum era então a desaceleração do crescimento econômico, com o fim do super ciclo de commodities. Ocorre que os países que mais contribuíram para o PIB da região crescer menos - Argentina, Brasil e Venezuela - não eram aqueles onde havia protestos.

De fato, os países com mais manifestações vinham tendo desempenho econômico acima da média. Nos 20 anos anteriores, os PIBs per capita de Bolívia, Chile, Colômbia e Peru haviam crescido a uma média de 2,3%, 2,5%, 2,2% e 3,4% ao ano (a.a.), respectivamente, contra uma média para a América Latina e Caribe de 1,2% a.a. No decênio 2009-18, o contraste fora ainda maior: essas taxas haviam sido de 3,2%, 1,8%, 2,3% e 3,2% a.a., contra uma média regional de 0,6% a.a.

O Chile é, talvez, o melhor exemplo. O PIB per capita chileno é 61% mais alto que a média da região. O país se caracterizou nas últimas décadas pela boa gestão macroeconômica, com inflação (média de 2,7% a.a. em 2009-18), taxa de desemprego (7,3%) e déficits público (1,3% do PIB) e em conta corrente (2,5% do PIB) relativamente baixos. Ainda assim, o Chile viveu um longo período de violentos protestos, que só diminuíram com a decisão de se votar uma nova constituição (a ser submetida neste domingo a plebiscito) e uma radical mudança de governo. Mudanças políticas radicais também ocorreram na Bolívia, na Colômbia e no Peru.

A explicação que o Relatório daria, talvez, é que as pessoas nesses países não estão felizes. O Chile, apesar de uma renda per capita 65% superior à brasileira, está seis posições atrás de nós no ranking. A Colômbia tem PIB per capita um pouco superior ao nosso, mas está 28 posições atrás. A mesma explicação talvez se aplique também à polarização política em países ricos como os Estados Unidos, que ocupa a 16ª posição no ranking, apesar de ter PIB per capita superior ao de todos os dez primeiros colocados, com exceção da Suíça e de Luxemburgo.

Medir felicidade é, claro, difícil. O Relatório faz isso desde seu início por meio de pesquisas realizadas pela Gallup com habitantes de cada país; em geral, cerca de mil entrevistas por país por ano. Há um esforço de correlacionar os resultados com uma série de variáveis, concluindo-se pela importância da renda, do apoio social, da saúde (expectativa de vida), da liberdade de fazer escolhas, da ausência de corrupção e da generosidade. Assim, por exemplo, apesar da renda mais alta, os EUA têm uma expectativa de vida mais baixa que todos os dez primeiros colocados no ranking: na média, 7% menor no caso de homens, 5% no de mulheres. E nos EUA a expectativa de vida está em queda (ver on.ft.com/3B5vZrr), ao contrário da renda.

Ao aceitar a felicidade como uma métrica alternativa ao crescimento econômico, chega-se a um cardápio mais amplo de políticas públicas a serem enfatizadas. Esse não é, porém, o foco central do Relatório. Mais interessante, nesse sentido, é o esforço que a OCDE tem feito com os indicadores do Better Life (www.oecdbetterlifeindex.org/). Na lista de indicadores aí considerados estão alguns conhecidos, como renda, habitação, educação e saúde, mas também outros menos comuns, como comunidade, engajamento cívico, equilíbrio vida-trabalho e satisfação com a vida.

Esse é um menu interessante para quem está montando programas para um eventual novo governo. Nele, o Brasil vai em geral melhor em outros indicadores que não a renda per capita, exceção à segurança pública, onde também estamos comparativamente bem mal. Mas, claro, comparados à média da OCDE, ainda temos bastante espaço para melhorar em quase todas as áreas. Infelizmente, o caminho que as eleições têm tomado, com forte polarização e muita raiva e ódio, não é um bom prenúncio. Esse caminho não deve ajudar a economia, mas tende a reduzir o nível de felicidade do país.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre

 

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