domingo, 3 de setembro de 2023

George Gurgel de Oliveira* - Brasil: educação, ciência e tecnologia para a sustentabilidade

O imperativo da mudança

A dinâmica das relações entre a sociedade, a educação, a ciência, a tecnologia e a natureza muda qualitativamente a partir da revolução industrial. As inovações científicas e tecnológicas, incorporadas aos processos produtivos, modificam exponencialmente a escala de produção e consumo, colocando-se a necessidade de ampliação dos mercados, além do Estado Nacional, criando novas relações políticas, econômicas e sociais nos planos nacional e internacional.

Desde então, desencadeou-se um processo de mundialização, transformando o modelo de ser e agir da humanidade nas suas relações entre si e com a própria natureza, impactando, como nunca antes na história, os ecossistemas, colocando em risco a sobrevivência da própria humanidade. Construiu-se uma lógica de produção e consumo que, histórica e atualmente, mostrou-se insustentável.

Portanto, coloca-se a necessidade de construir uma outra perspectiva de sociedade, ampliando as formas e os conteúdos da democracia, a partir de novas relações políticas, econômicas e sociais, nas quais a Educação, a Ciência e a Tecnologia cumprem um papel de destaque.

Continua moderno e contemporâneo o desafio de melhor realizar a distribuição da riqueza material produzida pelos que trabalham, incorporando os ganhos proporcionados pela Educação, Ciência e a Tecnologia, a favor do bem estar e da felicidade humana, preservando e valorizando a diversidade cultural e espiritual da sociedade, afirmando os direitos, deveres individuais e coletivos da cidadania, onde a sustentabilidade econômica, social e ambiental são fundamentos para a sobrevivência do planeta e da própria humanidade.

Vamos fazer esta travessia? Ou queremos continuar a nos autodestruir e ao próprio planeta? Nós somos os únicos responsáveis pela destruição da própria humanidade e dos ecossistemas planetários, tanto nos tempos de guerra, como de paz, com bilhões de pessoas ainda excluídas das conquistas sociais modernas.

Até quando vamos nos agredir, nos autodestruir e a própria natureza?

Quais os nossos compromissos com a nossa casa comum, com a nossa memória ancestral, com as gerações atuais e futuras?

Os desafios da Ciência, da Tecnologia e da Inovação (CTI)

Até os anos de 1960, a inovação científica e tecnológica era desenvolvida por meio de processos sucessivos e independentes de pesquisa básica, aplicadas fundamentalmente na área industrial.

A partir de então, os processos de inovação passam a ser trabalhados a partir de uma visão além da economia industrial, relacionando a educação, o sistema financeiro, o mundo do trabalho e da cultura, construindo o que se passou a chamar de economia do conhecimento (OCDE, e outros).

Assim, os países da OCDE vão incorporando, nos seus Sistemas de Inovação (SIS), novas áreas de conhecimento e de aprendizagem que se retroalimentam e vão construindo novas relações na comunidade científica com os diversos atores governamentais, do mercado e da sociedade em geral.

Os SIS vão sendo estruturados na Europa e nos Estados Unidos para alcançar determinados objetivos científicos e tecnológicos, trazendo resultados econômicos e sociais, particularmente nos planos regional e setorial, trazidos na maioria das vezes pela integração das cadeias produtivas, a partir de investimentos do próprio Estado, aliado ao capital privado ou com empresas de economia mista na Europa, nos EUA e no Brasil (Petrobras, Eletrobras, Embraer, Embrapa).

Atualmente, as principais economias mundiais, concentradas no G20, particularmente os Estados Unidos, a China e a Rússia, consomem mais da metade dos recursos naturais do planeta. Esses países concentram os avanços das eiências e das principais tecnologias mundiais. Construíram os seus Sistemas de C&T&I e novas formas de relações econômicas, sociais e ambientais, concentrando e excluindo populações nos centros urbanos e industriais, com danos irreversíveis aos ecossistemas planetários, impactando a vida de milhões de pessoas em todos os continentes, onde a questão das mudanças climáticas é a mais perfeita tradução da inconsequência humana nas suas relações com a natureza.

Assim, tem funcionado a dinâmica do sistema capitalista mundial, do capital produtivo e financeiro. Atenção especial para o funcionamento do Complexo Industrial Militar consolidado durante o século XX, entre as duas guerras mundiais, durante a guerra fria, até a atualidade. Imaginem se, apenas durante o século XX, todos os investimentos em C&T&I deste Complexo Industrial Militar tivessem sido aplicados para a cultura da paz e o enfrentamento dos nossos inimigos reais: a fome, a pobreza, a habitação, o saneamento básico, o analfabetismo...

Portanto, é imperativo a construção de uma outra sociedade, na qual a cultura da paz seja o fundamento da sustentabilidade humana e do próprio planeta.

Assim, estamos desafiados a superar, com a urgência devida, os graves problemas decorridos dos modelos industrial e urbano construídos historicamente, concentradores de populações, indústrias e pobreza, responsáveis pela ampliação do nível de poluição das águas, da atmosfera e dos solos, impactando, cada vez mais, os ecossistemas e as populações do planeta. São urgentes as mudanças a serem realizadas para a melhoria do funcionamento dos organismos multilaterais, a exemplo da ONU, do FMI e do Banco Mundial, organizações que não sinalizam de maneira efetiva para a implementação das medidas necessárias e já aprovadas nas Agendas das conferências mundiais da ONU desde a I Conferência Mundial de Meio Ambiente em Estocolmo-1972, decisões sempre referendadas pelos governos nacionais, pela maioria da comunidade cientifica e pelas organizações da sociedade civil a nível mundial.

Desde então, de Estocolmo em 1972 a Rio+20, em 2012, avançou-se pouco em termos globais, em relação às demandas ambientais, aos investimentos e apoios aos programas educacionais e aos Sistemas Nacionais de C&T&I: a maioria das questões agendadas não foram enfrentadas e as soluções continuam sendo adiadas.

Em 2012, na última conferência mundial, a RIO+20, o cenário era de frustração em relação ao que fora planejado, em 1992, no Rio de Janeiro, principalmente em relação às metas da Agenda 21 e às medidas que deveriam ser implementadas para minimizar os efeitos das mudanças climáticas, que vêm causando danos irreversíveis aos ecossistemas planetários e às populações em distintas regiões do planeta.

Por outro lado, constata-se, de maneira positiva, a ampliação da consciência  mundial, dos movimentos políticos e sociais e uma participação cada vez mais ampla da comunidade científica e da sociedade civil em geral, clamando por tratar com a urgência devida as questões ligadas à degradação dos ecossistemas, das mudanças climáticas e das relacionadas com a exclusão social, como também a necessidade de uma nova economia, de baixo carbono, com incentivo do uso de energias renováveis, variáveis a serem consideradas no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental, onde a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação podem e devem cumprir um papel de destaque.

Ainda, entre as guerras e conflitos regionais em andamento, há de se destacar, de maneira preocupante, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia como parte integrante de um conflito internacional de disputa geopolítica, principalmente entre os EUA e a China. Os impactos econômicos, sociais e ambientais causados pelas guerras; os conflitos étnicos e religiosos; a ampliação da migração de milhares de pessoas do continente africano e do asiático para a Europa e as migrações internas no continente americano; apontam para realidades econômica, social e ambiental insustentáveis.

Assim, em um contexto de crises econômicas recorrentes do capitalismo, desde a década de 1980, e a atual situação econômica e social desfavorável da própria Comunidade Europeia, agravada com a guerra Rússia x Ucrânia em andamento, coloca-se ainda mais a necessidade de efetivas mudanças a favor desta sustentabilidade mundial. O cenário continua adverso. A guerra se prolonga, com a prevalência do capital financeiro em relação ao capital produtivo em sintonia com a brutalidade do complexo industrial-militar. As conquistas do Estado de Bem-Estar Social na Europa vão sendo subtraídas, colocando as populações e os países em situação de graves retrocessos políticos, econômicos e sociais. Também é preocupante a realidade pós- pandemia dos países da Ásia, África e América Latina que não conseguem avançar nas suas agendas econômicas e sociais, perdurando os conflitos políticos e as guerras regionais, destacando-se os conflitos recentes e em andamento na África.

O Brasil em uma perspectiva sustentável

Em relação à realidade brasileira, os desafios históricos continuam atuais, agregando-se novos desafios para a construção de uma sociedade democrática, com uma outra perspectiva política, no caminho de uma nova economia, social e ambientalmente sustentável.

A superação das desigualdades sociais, a construção de uma economia de baixo carbono, a preservação do meio ambiente, dos valores culturais e espirituais construídos ao longo da história da sociedade brasileira são horizontes a serem perseguidos para a construção de uma perspectiva sustentável para o Brasil, onde a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação podem e devem cumprir um papel de destaque.

O Brasil atual é uma das sociedades com maiores exclusão social e concentração de riquezas do planeta. A população brasileira é aproximadamente de 210 milhões de pessoas, com menos de 200 mil pessoas proprietárias da metade da riqueza nacional.

Como mudar esta realidade?

O Brasil construiu-se a partir de um modelo extrativista e de exploração da natureza, desde a época colonial, através de ciclos econômicos e um processo de industrialização tardio. Os conflitos econômicos, sociais e ambientais gerados por este tipo de desenvolvimento permanecem como resultado das relações predatórias e desiguais entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais que histórica e atualmente determinam o funcionamento do Estado, do mercado e da sociedade em geral e as relações estabelecidas do Brasil com o mundo.

Os custos econômicos, sociais e ambientais deste modelo são alarmantes, a exemplo do que aconteceu com a mata atlântica (apenas 8% da mata original está preservada). Nos últimos anos, ampliou-se o nível de degradação da Amazônia, dos cerrados e do pantanal.

A partir de 1950, com a consolidação da matriz energética brasileira (biomassa, hidráulica, petróleo-gás e nuclear), com a construção de parques industriais e a ampliação das fronteiras agrícola e pecuária, amplia-se a escala de poluição do ar, do solo e da água, colocando o desafio de preservação do meio ambiente como uma questão do Estado, do mercado e de toda a sociedade brasileira.

O processo de urbanização acelerada, a partir dos anos 70, agravou ainda mais as questões relacionadas à segurança pública, mobilidade, saneamento básico, moradia, educação e saúde, chamando a atenção para os graves problemas a serem enfrentados e historicamente adiados pela sociedade brasileira.

Assim, o Brasil fez uma modernização conservadora. Tecnologicamente avançou em algumas áreas, a exemplo da indústria de petróleo e gás, alcoolquímica, aviação, armas e equipamentos militares, agricultura e pecuária. Por outro lado, como na Colônia, continua exportador de recursos naturais e produtos de baixo valor agregado: minérios de ferro, produtos agropecuários, alumínio, papel e celulose, soja e carnes, com consumo gigantesco de água e energia incorporado nesses processos produtivos.

Portanto, fica evidente a dependência-subordinação da economia brasileira às principais economias mundiais como fornecedora de matérias-primas, água, energia e mão de obra. A economia continua muito dependente do valor das commodities no mercado internacional. Nos últimos anos, agravou-se esta situação, com a diminuição do setor industrial na participação do PIB brasileiro.

Neste cenário internacional de ameaças e oportunidades, o Brasil pela sua dimensão territorial, pelas riquezas naturais, base técnica e científica que construiu nos últimos anos, aliado ao ativismo da sua sociedade civil, tem jogado um papel relevante no cenário internacional na discussão de uma agenda sustentável, desde a RIO+92.

Nos últimos anos, a sociedade brasileira tem se manifestado de uma maneira muito clara, querendo reformas e um outro tipo de representação política. No Brasil, as mortes, os assassinatos, fazem parte do nosso cotidiano, na maioria das vezes atingindo a população pobre, indígena e negra, que constituem a maior parte dos brasileiros.

Portanto, deve-se aproveitar a atual crise política e de valores da nossa sociedade para a construção de um novo pacto político, econômico e social, que ajude a avançar a democracia rumo a esse futuro sustentável, onde a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação podem e devem cumprir um papel relevante.

Os fundamentos de um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para a sustentabilidade econômica, social e ambiental do Brasil

A implementação da Agenda 21 brasileira, compromisso do Brasil com a ONU, desde a ECO-92, ficou a desejar, por muitas razões. Fundamentalmente, porque os compromissos desta Agenda não são obrigatórios, mas sim declaratórios, como a maioria das agendas e declarações da ONU.

Assim, nem a ONU, nem as organizações multilaterais mundiais, nem os governos nacionais se sentem obrigados, inclusive o governo brasileiro, a implementar as agendas nacionais propostas. Faltam as condições materiais, planejamento, investimentos, principalmente os financeiros.

Em geral, no Brasil, os avanços sociais, econômicos e ambientais são reativos. Acontecem em função da pressão da sociedade em relação a determinados programas e projetos internacionais/governamentais, ou quando acontecem tragédias com grandes impactos sociais e ambientais, com reflexos negativos na qualidade de vida das populações, o que, há décadas, faz parte do cotidiano brasileiro, atingindo, na maioria das vezes os mais vulneráveis da sociedade.

Desde 1970, avançou-se no Brasil a consciência em relação à questão ambiental e as suas relações econômicas e sociais. No entanto, ainda não se incorporam estas variáveis nos processos de construção das políticas públicas, tanto a nível federal, como estadual e também na maioria dos municípios brasileiros: a maior parte não considera a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação como valores estratégicos para a sustentabilidade e o futuro da sociedade brasileira.

A Constituição de 1988, que nos traz de volta a democracia, declara no capítulo VI que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida, sendo responsabilidade do poder público e da sociedade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as atuais e futuras gerações.

Nessa perspectiva construiu-se a Política Nacional de Meio Ambiente, que tem como maior objetivo a preservação e a recuperação da qualidade ambiental do Brasil, criando as condições para a sustentabilidade econômica, social e ambiental.

Assim, nos últimos trinta e cinco anos de redemocratização da sociedade brasileira, foram criadas as condições institucionais para a construção de políticas públicas, que incorporem de maneira transversal as questões econômicas, sociais, ambientais e educacionais, fundamentos para a construção de uma outra perspectiva de sociedade que se quer sustentável.

No entanto, a realidade é muito mais complexa. No Brasil, desde os anos 1970, os grandes programas e projetos de infraestrutura construídos, desde o regime militar e que continuam atualmente, não incorporam a questão ambiental, a educação, a ciência e a tecnologia como valores estratégicos. Via de regra, os nossos governantes e a elite empresarial brasileira criam maneiras e artifícios para o não cumprimento da legislação, acarretando, muitas vezes em graves acidentes e impactos sociais e ambientais, atingindo, na maioria das vezes, as populações mais vulneráveis da sociedade. A questão da água, da gestão das bacias hidrográficas, dos aqüíferos, do oceano atlântico e das florestas ainda não são considerados ativos estruturantes para nortear um Plano Nacional de C&T&I, fundamento de um novo ciclo econômico para a indústria, a agricultura e o turismo, crucial para a construção da sustentabilidade brasileira.

Os limites impostos à economia baseada em carbono colocam o Brasil em uma situação de destaque, em relação à questão ambiental, com vantagens comparativas, na perspectiva de uma nova economia para um novo ciclo industrial com base na inovação científica e tecnológica, no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental.

Portanto, deve-se trabalhar a construção de um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil em função das suas realidades regionais e potencialidades: biodiversidade, território, riquezas minerais, água, energia solar e eólica em sintonia com a base científica e tecnológica brasileira e as necessárias parcerias internacionais, com foco na integração latino-americana.

Assim, continuamos desafiados à construção de novas relações políticas, econômicas e sociais entre os diversos atores do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil. Nesta perspectiva, vão sendo criadas as condições políticas, econômicas e sociais para a construção de uma sociedade sustentável, na qual a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação devem cumprir um papel de destaque.

Finalmente, há que se compreender e trabalhar as relações sociedade, ciência, tecnologia e inovação como parte integrante da história da humanidade em suas relações com a natureza, procurando entender os conflitos e contradições da sociedade atual, buscando soluções, sobretudo identificando as diferenças e os reais interesses entre os diversos atores sociais em questão, criando os fundamentos de novas relações políticas, econômicas e sociais, no caminho da sociedade futura que se almeja sustentável.

*Professor da UFBA e do Instituto Politécnico da Bahia

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