Folha de S. Paulo
50 anos do golpe no Chile coincidem com
ascensão da ultradireita
Em recente entrevista à rede CNN, uma das
filhas de Salvador Allende (1908-1973), a senadora Isabel Allende —não
confundir com a escritora homônima, que tem outro grau de parentesco com o
líder socialista— afirmou que, no aniversário de 40 anos do golpe de Estado, o
então presidente Sebastián Piñera, de direita, pôde dar uma mensagem muito mais
clara de reforço à democracia e rejeição da ditadura
militar do que o atual líder, o centro-esquerdista Gabriel Boric,
tem conseguido.
"Boric está pedindo uma revisão crítica do governo da Unidade Popular [coalizão de Allende], puramente por conta da pressão da oposição", disse a senadora, cujo último abraço em seu pai ocorreu poucas horas antes do bombardeio do La Moneda, em 11 de setembro de 1973.
A proximidade dos 50 anos dos atos que
recordam o ataque ao icônico edifício em Santiago, o
suicídio de Allende, o fim do projeto de chegar ao socialismo pela via
democrática e o início de uma cruel ditadura militar que se estendeu até 1990
acentuou a polarização chilena.
Boric enfrenta problemas em várias frentes,
como as
reformas que não tem conseguido aprovar por conta de um Congresso opositor, a
tentativa de reescrever a Constituição que está tomando rumo diferente do
desejado, além de conflitos no sul, com
os mapuche, e no norte, com
o aumento do fluxo de imigrantes da Venezuela.
O cinquentenário
de uma das maiores tragédias da história do país ocorre justo no
momento de maior influência da direita e da ultradireita chilenas desde o fim
da ditadura.
Boric buscou emitir mensagem muito clara de
reforço à democracia e rejeição às violações de direitos humanos cometidas no
período. Mas os primeiros entraves foram colocados pela própria esquerda do
Partido Comunista, crítico ao giro
ao centro que o governo deu buscando uma conciliação nacional.
A histórica sigla fez enorme pressão para
que o presidente retirasse a nomeação do jornalista Patrício Fernández, de
centro-esquerda, do comando das atividades sobre os 50 anos do golpe.
Fernández, um progressista que lançou um jornal, o The Clinic, justamente de
crítica ao pinochetismo, pareceu ao PC um nome demasiado brando.
Boric, então, entregou as celebrações a
distintos ministérios. Espera-se um ato simbolicamente grandioso, com
programação intensa. Entre as atividades estão um abraço ao La Moneda, uma marcha
de mulheres e um evento no Estádio Nacional com velas para recordar os que
estiveram presos ou morreram no local.
Para o evento principal devem estar
presentes os presidentes AMLO (México), Alberto
Fernández (Argentina) e Gustavo Petro (Colômbia),
entre outros. O presidente Lula (PT) foi
convidado, mas sua viagem
à Índia por conta do G20 deve impedi-lo de estar presente.
Ainda com a grande festa encomendada
e as
recentes medidas tomadas pelo governo pelo esclarecimento da verdade e pela
busca de pessoas desaparecidas, a crise política amarrou as mãos de Boric
nessa comemoração. Com o partido do ultradireitista José Antonio Kast dominando
a Assembleia Constituinte e a direita em geral com a maioria no Congresso,
Boric busca não melindrar demasiado o setor.
O presidente chileno havia pedido a todas
as forças políticas que assinassem a declaração conjunta "Pela Democracia,
Hoje e Sempre". Nem o PC nem a direita o farão. Nos últimos meses,
congressistas de direita relativizaram as crueldades cometidas por Pinochet.
É uma pena que não seja possível separar a memória de uma data trágica e seus mais de 3.000 desaparecidos da turbulenta política atual.
*Historiadora e jornalista especializada em
América Latina, foi correspondente da Folha em Buenos Aires. É autora de 'O Ano
da Cólera'
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