O Estado de S. Paulo
Os que realmente pretendem resolver as grandes questões do País têm de recuperar e exercer a capacidade para o debate e disposição ao consenso
O Supremo Tribunal Federal (STF) segue
protagonista da cena política nacional. Exemplos recentes foram a prisão do
ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques, a homologação da
delação premiada do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro Mauro Cid e a
invalidação das provas obtidas a partir do acordo de leniência da Odebrecht.
A crítica a esse protagonismo se intensificou nos últimos meses. Afirma-se, por exemplo, que, debelado o golpismo bolsonarista, o STF não deveria mais concentrar todos os processos sob sua jurisdição, nem se valer de ações heterodoxas no combate aos aparentes malfeitos do governo anterior. A crítica procede: sem retirar os méritos do tribunal na defesa da democracia, ela projeta o momento em que os amplos poderes autoatribuídos pelos ministros nos últimos tempos deixarão de existir. Como será o STF quando esse dia chegar? O que ou quem fará com que tais poderes deixem de existir? Se não deixarem de existir, eles serão exercidos por qual/quais ministro(s)?
As contestações de renomados especialistas a
algumas das ações recentes do tribunal dão sobrevida a críticas que costumavam
ser encaradas mais como reclamações políticas. Ou como pura animosidade, como
na acusação bolsonarista de que o País está diante de uma “ditadura do Judiciário”
ou de uma “democracia judicial”; de que haveria, da parte de alguns ministros
do STF, o exercício de um poder arbitrário, ou seja, orientado pela vontade do
ministro, que, com suas decisões, não reconheceria “as quatro linhas da
Constituição”.
Registre-se que essa acusação provém de um
grupo cuja concepção de democracia costuma ser imprecisa, isto é, que acusa o
Judiciário de implantar uma ditadura ao mesmo tempo que ignora ou recusa que o
poder das maiorias formadas na democracia tenha limites constitucionais
intransponíveis. Recorde-se a declaração de Bolsonaro, já citada neste espaço,
de julho de 2022: “As leis existem (...) para proteger as maiorias. As minorias
têm de se adequar”.
Moral da história: a crítica a uma democracia
judiciária muitas vezes é feita por quem sustenta uma democracia plebiscitária,
na qual o detentor do poder político – no caso, o vencedor da eleição
presidencial – encontra-se liberado da obrigação de respeitar leis superiores
cuja interpretação (pelo Judiciário) o limite. Não é assim, porém, que
funcionam as democracias constitucionais, que combinam limitações ao poder do
Estado com direitos fundamentais invioláveis pelas maiorias formadas no
processo democrático.
Maiorias que encontram sua expressão mais
significativa no Parlamento. É ali que divergências sobre questões de interesse
nacional podem resultar em acordos que, se não são ideais, são ao menos
aceitáveis para a maioria de nós/nossos representantes (foi o que ocorreu na
aprovação da reforma tributária na Câmara). A legitimidade desses acordos não
se funda simplesmente no fato de se ter chegado ao número de votos necessários
à sua aprovação, mas em todo o processo que a antecede, e permite a diferentes
correntes manifestaremse sobre o tema examinado.
O envolvimento dessas diferentes correntes em
discussões que miram um entendimento sobre assuntos de interesse comum marca a
especificidade dos debates legislativos diante de decisões judiciais, inclusive
do Supremo. Nestas, prevalece a definição sobre a constitucionalidade ou não de
uma medida. Por isso, normalmente há pouco espaço para acomodar diferenças de
opinião ou interesse. Essas diferenças viram números, como vemos nos
julgamentos do tribunal: 10 x 1, 6 x 5, etc. O vencedor da disputa judicial,
então, leva tudo. Normalmente, não há meio-termo (ou não caberia ao órgão
judicial alcançá-lo).
Isso não parece adequado a temas de grande
dimensão e divergência na sociedade, que muitas vezes contêm múltiplos
aspectos, nuances, vantagens e desvantagens dificilmente abarcáveis em decisões
judiciais de sentido único. Além disso, pela grande dimensão desses temas, sua
definição pelo Judiciário num dado momento não põe fim ao desacordo social nem
à atuação dos derrotados no tribunal. Até porque os derrotados de ontem podem
ser os vencedores de amanhã, como mostrou a recente decisão da Suprema Corte
norte-americana no caso do aborto.
Portanto, se é inegável que a prática
política brasileira tantas vezes deixa de se orientar pelos interesses da
sociedade, também parece claro que isso não será reparado pela adoção de uma
democracia judiciária ou plebiscitária. Melhor ficar com o exemplo da reforma
tributária, que, como registrado em editorial deste jornal, “mostrou quão longe
o Brasil pode avançar quando forças políticas adversárias são capazes de
superar divergências para debater, civilizada e democraticamente, projetos de
interesse de toda a sociedade” (10/7/2023).
Os que realmente pretendem resolver as
grandes questões do País precisam recuperar e exercer essa capacidade para o debate
e disposição ao consenso.
*Doutor em Direito pela USP e pela Università
degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi
e Facamp
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