Repatriação de brasileiros tem sido exemplar
O Globo
Itamaraty e FAB são impecáveis ao retirar da
zona de conflito cidadãos que desejam voltar ao Brasil
A marca da Operação Voltando em Paz,
coordenada pelos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, tem sido a
agilidade. Até o fim da tarde de ontem, menos de uma semana depois do ataque do
grupo terrorista Hamas a
Israel, quatro voos do governo brasileiro já haviam resgatado 701 brasileiros
de Tel Aviv. O primeiro saiu na terça-feira e levou 211 passageiros a Brasília.
O segundo, com 214, chegou ao Rio na madrugada de quinta. O terceiro, com 69,
aterrissou no Recife ontem e seguiu para São Paulo. O quarto, com 207, decolou
de Tel Aviv no final da tarde. Dois outros voos deverão partir de Israel até
domingo.
Na Faixa de Gaza, 22 brasileiros, a maioria mulheres e crianças, também querem voltar ao Brasil. Um avião presidencial, com capacidade para 40 passageiros, decolou na quinta-feira com destino a Roma, onde espera o desenrolar da situação. O plano é que os brasileiros de Gaza cheguem ao Egito por terra. O governo já contratou transporte terrestre e aguardava ontem permissão de israelenses e egípcios para que a viagem ocorresse em segurança. Enquanto esperavam, parte estava reunida na Rosary Sisters School, escola católica local alvejada por Israel em 2021. Lá, tinham colchões e alimentos. Em meio aos ataques, o governo brasileiro solicitou formalmente ao israelense que não a bombardeasse. Outros 12 brasileiros que desejam voltar moram em Khan Younis, sul da Faixa de Gaza.
Mais de 2.500 brasileiros pediram repatriação
a funcionários da Embaixada do Brasil em Tel Aviv, a maior parte turistas.
Acertadamente, as autoridades vêm insistindo para que quem tenha voo comercial
marcado ou condições financeiras de pagar passagem não ocupe o lugar de quem
realmente precisa de ajuda para retornar ao Brasil. Os passageiros prioritários
são os residentes no país sem passagem aérea.
Na repatriação, o governo brasileiro foi até
agora impecável. No front diplomático, o desempenho é mais problemático. No
primeiro comunicado do Itamaraty sobre o ataque do Hamas, o grupo terrorista
nem é citado. As notas lamentando o assassinato de brasileiros falam em
“falecimento” e “morte” (palavra usada ontem, quando confirmado o assassinato
de outra brasileira).
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem
sido mais preciso. Por meio de sua conta numa rede social, se disse chocado com
os “ataques terroristas”. Na quinta-feira, conversou por telefone com o
presidente de Israel, Isaac Herzog, voltou a condenar o terrorismo e reafirmou
solidariedade aos familiares das vítimas. Faltou apenas uma condenação
explícita ao Hamas, cuja barbárie tem sido repudiada em termos duros por todas
as democracias.
Como o Brasil ocupa a presidência rotativa do
Conselho de Segurança da ONU,
as manifestações oficiais reverberam. Seria um erro enxergar o ataque por uma
lente ideológica. Não é de hoje que setores da esquerda justificam atrocidades
cometidas por terroristas e esquecem que o Hamas não representa o povo
palestino. Felizmente Lula parece ciente de que não há, nem nunca houve,
justificativa para a barbárie.
O governo não deve medir esforços para
continuar a retirar da zona de conflito, de ambos os lados da fronteira, os
brasileiros que desejarem voltar ao Brasil. Ao mesmo tempo, deve trabalhar com
a comunidade internacional para evitar a morte de civis e uma escalada do
conflito. Uma guerra que envolva as potências regionais seria um desastre de
consequências globais.
Brasil continua despreparado para reagir a
eventos climáticos extremos
O Globo
Cientistas constataram que calorão na
primavera resultou do aquecimento global — e se tornará mais frequente
Embora a ciência das mudanças
climáticas esteja consolidada, nem sempre é capaz de fazer
previsões precisas. É certo que o planeta está aquecendo em razão da emissão de
gases pela ação humana. Mas os cientistas têm dificuldades para atribuir ao
aquecimento global um evento específico — como a onda de calor que atingiu Sul,
Sudeste e Centro-Oeste do Brasil no início da primavera ou a seca que tem
propiciado queimadas na Amazônia.
Tudo o que podem é falar em probabilidades e, embora isso seja insuficiente
para haver certezas, é mais que suficiente para avaliar os riscos.
Havia dúvida sobre quanto da onda de calor
recente pode ser atribuído ao aquecimento global e quanto ao aquecimento das
águas do Pacífico pelo fenômeno climático El Niño. Não há mais. De acordo com
estudo do consórcio internacional World Weather Attribution (WWA), a maior
parte do calorão — ao redor de 90% —foi responsabilidade do efeito estufa, não
do El Niño. “Constatamos pelas observações um aumento de cerca de 5% na
temperatura, para o qual o El Niño teria contribuído com 0,5%”, afirmou Sara
Kew, do Instituto Real de Meteorologia da Holanda, coordenadora do WWA.
O consórcio estimou que um evento do tipo
ocorre uma vez a cada 30 anos e deduziu que, não fosse a mudança climática
produzida pelo homem, a temperatura teria sido entre 1,4 °C e 4,3 °C mais
baixa. A conclusão mais inquietante é que a ação humana aumentou a
probabilidade de um evento do tipo em pelo menos cem vezes. O WWA constatou
também que a temperatura na região já subiu mais que o 1,5 °C acima dos níveis
pré-industriais — objetivo fixado pelo Acordo de Paris para até o fim deste
século. Se subir 2 °C, eventos do tipo ocorrerão a cada cinco anos.
Nem tudo cai na conta do aquecimento global.
A seca na Amazônia e as chuvas na Bacia do Prata estão, segundo os cientistas,
ligadas ao El Niño. Claro que, do ponto de vista da população, nada muda se a
enxurrada que arrastou sua casa foi causada por um ou por outro. Cabe ao poder
público protegê-la.
No caso do calor, as cidades precisarão de
infraestrutura para fornecer água e plantar árvores. No caso dos incêndios ou
tempestades cada vez mais violentas, governos têm de trabalhar na prevenção.
Estima-se que 10 milhões de brasileiros vivam em áreas de risco. “Menos de 15%
dos municípios têm sistemas próprios de alerta de desastres e menos de 10%
contam com Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil”, diz Victor
Marchezini, pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de
Desastres Naturais (Cemaden). Dos 1.580 municípios cadastrados no Serviço
Geológico do Brasil-CPRM, só 729 têm Plano Municipal de Redução de Riscos.
O país tem um sistema de monitoramento sofisticado e poderia dar resposta rápida a eventos extremos, mas falha na comunicação e na coordenação. Não haverá como enfrentar o problema sem ação federal. Visitar áreas afetadas para se solidarizar com os moradores atingidos não adianta. Brasília precisa agir na prevenção. Não basta liberar verbas depois da tragédia.
PGR às avessas
Folha de S. Paulo
Lula e senadores querem travar ação criminal
e desprezam ampla função do órgão
É notável o descompasso entre o que o mundo
político hoje enxerga na Procuradoria-Geral da República e aquilo que os
constituintes imaginaram para o órgão.
Na visão de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
e dos senadores, tudo parece se dar como se a única função relevante da PGR fosse
a atuação na esfera penal, com a capacidade de oferecer denúncias criminais
contra quem só pode ser julgado no Supremo Tribunal Federal.
É esse o caso do presidente da República e dos congressistas.
A Constituição, contudo, espera muito mais
desse órgão responsável por chefiar o Ministério
Público Federal. Sua missão inclui zelar pelos interesses da
população como um todo e fiscalizar o cumprimento das leis, além de vigiar o
poder e defender o regime democrático —duas atribuições ignoradas na gestão
de Augusto Aras.
Cabe à PGR, ademais, tocar processos no Tribunal Superior
Eleitoral e no Superior Tribunal de
Justiça, onde sua caneta permite, por exemplo, federalizar graves
violações de direitos humanos.
Gama tão ampla de poderes deveria ser tratada
com a máxima seriedade, mas Lula tomou outro rumo.
Mesmo sabendo quando terminaria o mandato de
Aras, não se antecipou para definir a sucessão; agora que aliados lhe mostraram
alguns nomes, o presidente não gostou de nenhum e julgou
aceitável manter um comando interino.
Hesita não por querer conhecer as aptidões
jurídicas dos candidatos, mas por estar inseguro quanto ao alinhamento político
deles. Leia-se: por não saber como vão se comportar diante de eventuais
investigações criminais que envolvam membros do atual governo.
Lula joga fora a chance de retomar tradição
que ele próprio inaugurou ao pinçar pessoas dentro de uma lista tríplice
elaborada pelos pares. Prefere se guiar pelos maus exemplos de Fernando
Henrique Cardoso (PSDB) e Jair
Bolsonaro (PL), que nomearam um proverbial engavetador-geral
da República.
O Senado,
que poderia melhorar esse quadro, não o faz. Tendo o dever de aprovar a seleção
do presidente, essa Casa exerce um controle mesmo antes de sabatinar o indicado
—afinal, ninguém quer correr o risco de lançar alguém que será rejeitado no
Congresso.
O senador Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP) sabe disso muito bem. À frente da
Comissão de Constituição e Justiça, ele tem travado a
votação de nomes para outros cargos no intuito de elevar sua
influência na sucessão da PGR.
Não o faz com a finalidade de aperfeiçoar o
processo; assim como Lula, Alcolumbre e outros senadores só querem manter no
cabresto a pessoa com o poder de denunciá-los —o que já diz muito sobre suas
intenções de cumprir a lei.
Tributar múltis
Folha de S. Paulo
Acordo global para a cobrança de impostos
sobre gigantes pode mitigar injustiças
Avançam as tratativas para a adoção de
critérios internacionais mais justos para a tributação de multinacionais. Nas
últimas décadas, uma das principais falhas de coordenação global se deu
justamente nessa área, com a consequente exploração de brechas por parte das
empresas e a progressiva erosão da base tributária.
Desde 2013 há alinhamento no G20 para
reformar as regras de cobrança, no sentido de diminuir espaços predatórios de
paraísos fiscais e obter maior
justiça tributária —algo especialmente relevante para países em
desenvolvimento.
A OCDE, que reúne países de renda mais
alta, tem liderado
as tratativas. Em 2020, foi obtido acordo inicial em torno de dois
pilares. O primeiro diz respeito a regras de divisão de certos lucros de
multinacionais com base no local em que são obtidos e não na jurisdição em que
a empresa se situa.
No caso do comércio digital, por exemplo, a
territorialidade é pouco clara, e as corporações têm maior espaço para
minimizar impostos. Agora, com a divulgação dos termos que devem reger esse
fundamento, pode haver alta de até US$ 32 bilhões na coleta.
O tratado abrangeria 140 países e precisa
abarcar pelo menos 60% das empresas afetadas, o que implica a adesão dos EUA,
sede de boa parte delas. Teria a contrapartida de proibir, doravante, a
imposição unilateral de impostos sobre o comércio digital, mecanismo que tem
sido cada vez mais utilizados por outros países —e que tem como alvo as
gigantes americanas.
Ainda há objeções de alguns países, como
Brasil, Índia e Colômbia, que expressam preocupação com o risco de perda de
capacidade tributária. Os princípios, contudo, são apoiados por todos, e esses
obstáculos devem ser superados.
O segundo pilar dispõe sobre um imposto
global mínimo de 15%, medida necessária para coibir a concorrência predatória
de nações que se aproveitam de condições fiscais privilegiadas, como a Irlanda.
Nesse caso, o interesse dos EUA é alto,
porque são justamente suas empresas que têm direcionado propriedade intelectual
e lucros para esses destinos. Mesmo assim, dada a importância das grandes
companhias para que os dois pilares do acordo tenham abrangência suficiente,
será necessária a ratificação do arranjo pelo Congresso.
Não se espera que isso ocorra antes de 2025, o que sugere que a trajetória para maior justiça tributária mundial ainda deve ser longa.
O Brasil real, com seus problemas reais
O Estado de S. Paulo
Dias atrás, o Estadão trouxe um dado que não
é a rigor uma novidade, mas é sempre inquietante – e deve fazer pensar. De
acordo com o Critério Brasil, da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa
(Abep), três quartos da população – mais exatamente, 76,2% – são de classe C e
D: 28,7% classe D, 26,4% classe C2 e 21,1% classe C1. Ou seja, a grande maioria
da população do País é pobre.
Entre outros pontos, esse dado mostra que o
Estado tem um papel importante a cumprir. Dito de outra forma, a política não
tem o direito de ser disfuncional. Não pode ficar tratando de questões
imaginárias, de falsas polêmicas, de meros embates ideológicos. Há problemas
reais sérios que precisam ser enfrentados.
O Brasil não é propriamente um país pobre.
Tem muitas riquezas, produz muitas coisas, apresenta muitas potencialidades.
Mas, mesmo não sendo pobre, tem – eis a realidade – uma população
majoritariamente pobre, com várias e sérias vulnerabilidades, a começar pela
própria questão alimentar e educativa das novas gerações.
Essa realidade socioeconômica do País deve
levar a um profundo realismo na vida pública. Especialmente porque as pessoas
que exercem o poder, seja em que esfera for, raramente pertencem às faixas mais
pobres da população. É fácil, portanto, que os problemas reais que afetam a
imensa maioria dos brasileiros sejam ignorados ou relegados.
Caso nítido dessa desconexão entre quem detém
o poder e a realidade social é o contínuo reconhecimento pelo Judiciário de
novos direitos e novas equiparações – novas regalias – às elites do
funcionalismo público, em especial às carreiras jurídicas públicas. Exemplo
chocante ocorreu entre 2014 e 2018, quando, num período de grave crise social e
econômica no País, uma decisão liminar concedeu auxílio-moradia a todos os
juízes e membros do Ministério Público.
A política deve cuidar de todos, atender
todos. Mas deve, sobretudo, cuidar, atender e zelar pelos que mais necessitam.
Infelizmente, não é o que ocorre muitas vezes, revelando, entre outros
problemas, uma grave deficiência de representatividade. Há um regime democrático
– todo o poder emana do povo –, a maioria da população é pobre, mas o poder
parece servir a outros interesses, a um outro público.
Não são questões teóricas. Agora, por
exemplo, o Congresso discute a reforma tributária. Todos os dias há notícias de
grupos de interesse tentando alguma regalia, algum regime diferenciado, algum
tratamento privilegiado. É patente a existência de um esforço para desvirtuar a
reforma, fazendo com que as regras tributárias sejam indutoras de desigualdade
– o que representa um desvirtuamento do próprio Estado.
A funcionalidade da política é um assunto
muito sério. Não cabe ignorar os problemas reais da imensa maioria da
população. Tome-se o exemplo da questão do saneamento básico: depois de uma
batalha política de anos, o Congresso aprovou o marco do saneamento básico (Lei
14.026/2020), como medida para reverter uma situação absolutamente lamentável e
desumana, e, no entanto, há ainda hoje gente com poder tentando impedir a
implementação do novo regime, com o objetivo de defender os interesses de
empresas estatais ineficientes, que não atendem minimamente às necessidades
básicas da população, como água encanada e esgoto tratado.
Não basta um partido ou grupo político dizer
que defende os pobres ou declarar-se progressista se, depois, sua atuação
prática é em defesa de interesses corporativos ou de determinados grupos
mobilizados politicamente. Fenômeno frequente no País, essa incoerência é
certamente uma das causas para que o exercício do poder no regime democrático
seja tão indiferente às necessidades reais da população.
A política é cuidar de quem mais precisa.
Isso é democracia, compromisso com o interesse público. E esse deve ser o
grande critério de avaliação da atuação do Estado, de suas políticas públicas e
das reformas legislativas. Essas medidas estão efetivamente melhorando a vida
das pessoas mais pobres, que são no Brasil a grande maioria?
Um Estado eficiente, nem grande nem mínimo
O Estado de S. Paulo
O momento é oportuno para a sociedade
refletir sobre o Estado que deseja. Hoje, é generalizada a percepção de que o
Estado falha ao prover as condições mínimas para uma vida digna
Tende a não terminar bem, isto é, a não gerar
bons resultados para a sociedade, qualquer debate sobre o “tamanho ideal” do
Estado que acabe poluído pela falsa dicotomia entre “Estado grande” e “Estado
mínimo”. Em geral, os defensores da ideia segundo a qual o Estado é o dínamo
por excelência do desenvolvimento do País – e por isso deve ter uma estrutura
igualmente ambiciosa – e aqueles que advogam que ao Estado caberia cuidar
apenas do mínimo necessário para que a iniciativa privada possa florescer
disputam um jogo de soma zero.
Como este jornal há muito defende, o caminho
mais promissor para levar o País de volta aos trilhos do desenvolvimento
econômico e social passa longe desses extremos. Passa, sim, pela construção de
um consenso em torno do que seja um Estado eficiente na gestão dos recursos públicos.
E por eficiência, na prática, entenda-se a capacidade do Estado para atender às
necessidades dos cidadãos por serviços públicos elementares para uma vida digna
gerindo o Orçamento de forma racional e absolutamente transparente.
Sabe-se que o Estado é grande demais porque
não perde uma oportunidade de se fazer notar, das mais diversas formas, na vida
dos cidadãos e das empresas. Sabe-se também que o Estado gasta muito – 12% do
Produto Interno Bruto (PIB) apenas com servidores –, o que resulta em uma das
mais altas cargas tributárias do mundo. Entretanto, nem uma coisa nem outra
levam os cidadãos a perceber que têm sido bem atendidos quando precisam do
Estado. E a razão para isso é simples: de fato, não estão. O Estado é
ineficiente na medida exata de seu gigantismo, sorvedouro de recursos públicos
que é para a sua manutenção – incluindo um rol de privilégios para a nata do
funcionalismo –, não para a prestação de serviços públicos com qualidade.
Desde ao menos 1930, esse modelo de
desenvolvimento que dá primazia ao Estado como vetor do crescimento nacional
tem se mostrado falho, como bem notou o sociólogo Bolívar Lamounier em recente
artigo neste jornal (O jeito cubano de Lula, 7/10/2023). Na Presidência da
República, convém lembrar, está alguém que ainda acredita firmemente nessa
ideia que não só é anacrônica, como também é altamente prejudicial ao País. Só
isso basta para mostrar quão difícil é a tarefa dos que se dispõem a resistir
às forças políticas estatizantes que fazem do Estado refém de suas agendas
particulares.
Não haveria momento mais oportuno para os
diversos setores da sociedade se dedicarem à reflexão sobre a eficiência do
Estado – um tema que não é novo, mas que poucas vezes foi tão urgente, dados os
inauditos desafios econômicos, sociais, ambientais e geopolíticos que se põem
diante do País.
Duas das mais importantes reformas
estruturantes para o Brasil, a tributária e a administrativa, ora tramitam no
Congresso. E uma está intimamente ligada à outra. A reforma tributária, já
aprovada pela Câmara e em discussão no Senado, trouxe avanços dos mais
significativos para acabar com o manicômio tributário brasileiro. A reforma
administrativa, embora ainda careça de um delineamento mais fino de seu escopo,
também tem potencial para avançar sobre pontos considerados intocáveis até
pouco tempo atrás, como a questão da avaliação de desempenho dos servidores e,
quiçá, o fim da estabilidade no serviço público para cargos que não sejam
típicos de Estado.
Mas, para ser bem-sucedida, a reforma
administrativa não pode se circunscrever à mera modificação de um punhado de
normas na gestão de recursos humanos no serviço público. A abordagem deve ser
muito mais qualificada, orientada pela própria definição do Estado que a
sociedade deseja quando fala, por meio de suas organizações ou de seus
representantes eleitos, em Estado eficiente. E como o Estado não é composto
apenas pelo Poder Executivo, por óbvio uma boa reforma administrativa há de
contemplar, também, os Poderes Legislativo e Judiciário.
Não é assim, porém, que o tema tem sido
conduzido pelo governo e pelo Congresso. Mas é como deve ser, caso a sociedade
queira contar adiante com um Estado enxuto e eficiente sempre que precisar.
Receita velha para montadora nova
O Estado de S. Paulo
Autoridades reeditam benefícios fiscais para chinesa BYD assumir unidade que pertencia à Ford na Bahia
O grupo
chinês BYD assumiu as operações de uma fábrica que já havia pertencido à Ford,
em Camaçari (BA). No complexo industrial abandonado pela montadora
norte-americana em 2021, a BYD pretende investir R$ 3 bilhões para produzir
três modelos da marca, sendo dois elétricos e um híbrido, além de caminhões e
ônibus, e instalar uma unidade de processamento de lítio. A pretensão é
transformar a localidade no “Vale do Silício” brasileiro.
Como costuma acontecer nessas ocasiões, o
evento contou com a presença de autoridades, entre elas o vice-presidente
Geraldo Alckmin e o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues. A cerimônia foi
marcada pela instalação de uma pedra fundamental que simboliza novos tempos
para a região e para mais de 5 mil empregados diretos e indiretos. Serão mesmo?
Tomara, mas não é o que parece.
Antes mesmo de começar a produção, prevista
para o fim de 2024, a BYD batalhou arduamente para garantir a concessão de
benefícios fiscais, sem os quais muito provavelmente o investimento jamais
seria realizado. A chinesa tem muito a comemorar: aos 45 minutos do segundo
tempo, deve conseguir enquadramento no programa especial que oferece incentivos
para montadoras no Nordeste, cuja vigência se encerra em 2025.
Tal benesse deve ser garantida na forma de
uma emenda da reforma tributária que tramita no Senado, de autoria do senador
Otto Alencar (PSD-BA). Um dos motes da proposta da reforma é justamente dar fim
à nefasta guerra fiscal entre os Estados, na qual as montadoras – e a Ford, em
particular – tiveram um papel preponderante na década de 1990. Seria irônico,
não fosse trágico.
O governador da Bahia, por sua vez, enviou um
projeto de lei à Assembleia Legislativa para isentar o IPVA de veículos
elétricos com valor de até R$ 300 mil. Poucas vezes se viu um exemplo
cristalino da famosa regressividade da carga tributária. Certamente, na
avaliação dele, deve haver uma boa razão para garantir que proprietários com
tamanha capacidade financeira fiquem isentos do imposto, enquanto os donos de
veículos mais antigos e baratos tenham de contribuir com as finanças estaduais.
É de estarrecer a facilidade com que o Estado
se dispõe a abrir mão de receitas próprias. Em ambos os casos, a arrecadação é
compartilhada com municípios. Teriam os prefeitos concordado com as medidas?
Não faltam estudos a questionar se as isenções de fato compensam os resultados
efetivos desse tipo de iniciativa na economia.
Romper este ciclo de eterno retorno é uma das
condições necessárias para o País reverter um histórico de resultados fiscais
pífios e crescimento econômico baixo e claudicante. Não se trata de rejeitar a
chegada de investimentos ou a geração de empregos, mas de parar de cometer os
mesmos erros que marcam a relação entre o Estado e a indústria automotiva desde
a década de 1920.
Um primeiro e importante passo seria levantar e avaliar os custos e benefícios dessas políticas antes de anunciá-las com pompa e circunstância. Foi, aliás, o cálculo que fez a Ford ao decidir deixar o País há dois anos.
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