Estados obtêm compensação dupla por perda de
ICMS
O Globo
Mesmo já beneficiados com R$ 27 bilhões,
governos elevam alíquotas, de olho na reforma tributária
Está em curso uma manobra de governos
estaduais para inflar receitas com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços (ICMS) e se beneficiar na reforma tributária que tramita no Congresso.
Executivo e Legislativo precisam estar atentos para impedir a perpetuação
dessas distorções na arrecadação estadual e municipal em detrimento do
contribuinte.
A operação, revelada em reportagem do GLOBO, é simples. De acordo com dados do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz), 16 estados (Acre, Alagoas, Amazonas, Amapá, Ceará, Bahia, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Paraná, Roraima, Rondônia, Sergipe e Tocantins) e o Distrito Federal já elevaram, no ano passado ou neste ano, suas alíquotas de ICMS entre 1 e 3,5 pontos percentuais. O pretexto alegado é recompor receitas perdidas quando o então presidente Jair Bolsonaro, em campanha à reeleição, cortou o ICMS sobre combustíveis, serviços de telecomunicações e eletricidade, importantes fontes de receitas tributárias dos governadores.
A justificativa é uma balela. No início do
mês, o Senado aprovou projeto de lei complementar, remetido à sanção
presidencial, para transferir R$ 27 bilhões da União aos estados e ao Distrito
Federal, a título de compensação pelas perdas com o ICMS em 2022. O Fundo de
Participação dos Estados (FPE) e o dos Municípios (FPM) também foram
contemplados.
O objetivo real dos governadores com o
aumento da arrecadação é outro. A elevação tem um efeito secundário: infla a
receita média estadual nos próximos anos. Com isso, os estados poderão ser
beneficiados na reforma tributária. Pelo texto em tramitação no Congresso,
tanto o ICMS estadual quanto o Imposto Sobre Serviços (ISS) municipal serão
substituídos pelo novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). No cálculo da fatia
do novo imposto que caberá a cada estado ou município, será levada em
consideração a arrecadação média entre 2024 e 2028. Quanto maior ela for,
portanto, maior o quinhão a que o ente federativo terá direito se a reforma for
aprovada.
Os 12 entes com ICMS já majorado — em cinco o
aumento entrará em vigor no ano que vem — ganham duas vezes. Primeiro, na
indenização aprovada no Congresso para compensar as perdas de 2022. Segundo, na
elevação da alíquota-padrão do imposto. Com isso, o contribuinte também paga
duplamente — via aumento de imposto e por meio da transferência bilionária do
Tesouro. Pior: usa-se como argumento o corte do ICMS sobre alguns produtos e
serviços em 2022 para aumentar a alíquota básica, que atinge todos.
Os estados têm divulgado cifras exageradas de
perdas com a arrecadação do ICMS, seu principal imposto. Tudo é lançado na
conta do corte do ICMS sobre os combustíveis, energia elétrica e
telecomunicações. Será necessário jogar luz sobre todos os dados. Desde já, é
possível acompanhar a compensação das perdas alegadas por governos estaduais,
para que a calibragem do IBS seja a mais realista possível, sem penalizar
estados ou contribuintes, mas também sem beneficiar ninguém. Qualquer aumento
abusivo de imposto precisará ser considerado na reforma tributária na hora
definir as receitas a que cada ente federativo terá direito. Do contrário, a
carga de impostos necessária para arcar com as vantagens indevidas terá de ser
ainda maior, causando prejuízo para toda a economia.
Não pode haver mais demora para prorrogar
desoneração da folha
O Globo
Senado tem oportunidade de ampliar geração de
empregos — e deve reduzir o dano da extensão às prefeituras
Está prevista para hoje, na Comissão de
Assuntos Econômicos do Senado, a votação do Projeto de Lei que prorroga até
2027 a desoneração da folha salarial dos 17 setores que mais empregam no país.
Criada em 2011, a lei da desoneração permitiu que as empresas pagassem à Previdência um
percentual de 1% a 4,5% sobre o faturamento bruto, em vez de 20% sobre o total
da folha de pagamentos. Com a medida, empregos em setores de baixo crescimento
foram preservados. Noutros mais dinâmicos, novas vagas surgiram, criando um
ciclo virtuoso.
Mais competitivas, as empresas beneficiadas
cresceram e contrataram mão de obra. A estimativa é que a medida tenha gerado
1,2 milhão de empregos entre 2017 e 2022, alta de 16% nos setores contemplados.
Ao longo da última década, ela foi estendida diante dos benefícios. Mas, em
2018, 13 setores originalmente beneficiados foram reonerados para compensar a
redução de impostos sobre o diesel. Estima-se que teria havido perda de 1,6
milhão de postos de trabalho se a reoneração tivesse se estendido aos demais 17
setores. Por isso fez bem o Senado em propor prorrogar até o fim de 2027 a
desoneração, que expiraria em dezembro.
O projeto atual contempla setores como
construção civil, centrais de atendimento, infraestrutura, comunicação,
confecção e vestuário, máquinas e equipamentos, calçados, tecnologia da informação,
transporte e automotivo. Todos empregam parcela considerável da força de
trabalho e têm alto potencial gerador de empregos.
Não é o caso das prefeituras, para as quais o
texto prevê redução da contribuição previdenciária dos atuais 20% para até 8%,
com alíquotas escalonadas pelo PIB per capita. A inclusão dos municípios
desvirtuou a natureza do projeto. Representa uma perda estimada em R$ 19
bilhões aos cofres da Previdência, num momento em que o governo luta para
aumentar suas receitas de modo a cumprir as metas fiscais.
Empresas privadas contribuem com impostos
para as três esferas de governo. Respondem aos ciclos da economia com
agilidade. Podem contratar e demitir sem entraves legais. Prefeituras são a
antítese disso. Funcionários têm estabilidade, e os orçamentos são engessados.
É verdade que muitas estão em dificuldades, mas a desoneração da contribuição à
Previdência não é o remédio indicado. A lógica dessa política não se aplica ao
setor público.
De volta ao Senado, existe a chance de os senadores corrigirem o texto. O senador Angelo Coronel (PSD-BA), relator do PL, deveria retomar a redação original, que beneficiava apenas prefeituras em cidades com mais de 142 mil habitantes. Retomando a formulação original, Coronel ao menos reduzirá o dano aos cofres públicos.
Aumento da renda sustenta a expansão da
economia
Valor Econômico
Um ponto negativo nesse quadro é a
inadimplência elevada, que neutraliza parte do benefício do aumento da renda
A expansão da renda da população brasileira
foi motivo de debate na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom)
do Banco Central, relata a ata do encontro. Foi um dos quatro fatores
identificados como prováveis causadores dos inesperados números da economia
verificados até agora neste ano, ao lado do desempenho da agropecuária, de um
aumento da taxa de juros neutra (aquela que não acelera nem desacelera a
inflação) e da expansão do crescimento potencial devido a reformas regulatórias
e avanços institucionais. De todos, foi considerado muito relevante dado seu
efeito no crescimento do consumo das famílias e a preocupação com seu impacto
na inflação de serviços.
O Valor (11/10) detalhou os números
que despertaram a atenção dos membros do Copom. Segundo o BC, a Renda Nacional
Disponível Bruta das Famílias (RNDBF) em sua versão restrita cresceu 7,7% em
termos reais no trimestre móvel até agosto em comparação com o mesmo período do
ano passado, 7,9% no acumulado do ano e 9,1% em 12 meses. O levantamento do BC
no conceito restrito engloba a remuneração do trabalho, benefícios
previdenciários e transferências de programas sociais; desconsidera outras
fontes como aluguéis e aplicações financeiras; e ainda desconta os impostos.
Outros levantamentos vão na mesma direção. O
jornal mencionou a massa de renda total das famílias calculada pela Tendências
Consultoria, que leva em consideração a renda habitual e projeta para este ano
crescimento de 6,2% da massa total, depois de ter registrado 6,5% em 2022.
A mais recente Pnad Contínua, do IBGE, que calcula o ganho obtido exclusivamente do trabalho, apurou que a renda média dos trabalhadores aumentou 1,1% no trimestre móvel terminado em agosto em comparação com o encerrado em maio, e 4,6% em relação ao mesmo período de 2022. Já a massa de rendimentos real habitualmente recebida por pessoas ocupadas (em todos os trabalhos) cresceu 2,4% ante o trimestre anterior e atingiu novo recorde, de R$ 288,9 bilhões, o maior valor da história em termos reais. Frente a igual período de 2022, houve alta de 5,5%.
Os números vistosos têm vários motivos. O
Copom relaciona o dinamismo do mercado de trabalho, a queda de preços de
alimentos e os programas de transferência de renda, que apoiam o consumo.
Segundo a Pnad Contínua, a taxa de desemprego caiu para 7,8% no trimestre
terminado em agosto, o menor patamar desde fevereiro de 2015, e abaixo dos 8,3%
do trimestre encerrado em maio, em reflexo do dinamismo da economia que,
segundo as previsões, poderá crescer ao redor de 3% neste ano. O reajuste do
salário mínimo impulsiona também a renda dos trabalhadores.
O aumento dos programas de transferência de
renda é outro fator. O governo Lula revisou e elevou o valor distribuído pelo
Bolsa Família. Segundo a LCA Consultoria, em agosto, 21,1 milhões de famílias
eram beneficiadas pelo programa com uma média de R$ 675 por família, valor que
supera o piso em vista dos adicionais concedidos por criança na família,
totalizando R$ 14 bilhões. Em 2019, eram 13,8 milhões de famílias beneficiadas,
com uma média R$ 240 mensais. O programa hoje se aproxima de 2% do Produto
Interno Bruto (PIB) e chega perto de 3% incluindo o Benefício de Prestação
Continuada (BPC).
Não se pode deixar de levar em consideração o
ganho obtido com a queda da inflação, uma vez que os levantamentos calculam o
ganho real. O Indicador Ipea de Inflação por Faixa de Renda mostra que o índice
de preços foi, em agosto, novamente menor para as famílias de renda mais baixa.
Enquanto os preços dos bens e serviços consumidos pelo grupo de renda muito
baixa avançaram, em média, 0,13% em agosto, a variação média dos preços no
segmento de renda alta foi de 0,24%. No acumulado do ano, a inflação para a
renda muito baixa ficou em 2,3%, e, para a renda alta, em 3,8%; e, no acumulado
em 12 meses, em 3,7% e 5,9%, respectivamente.
Um dos motivos principais é a baixa dos
preços dos alimentos, proporcionada pela safra recorde desde 2022, mais
significativa para a baixa renda. O valor da cesta básica em São Paulo, por
exemplo, calculada pelo Dieese, caiu em setembro pelo quinto mês seguido, e
está 2,13% menor do que há um ano atrás, para um salário mínimo 8,9% maior.
Um ponto negativo nesse quadro é a
inadimplência elevada, que neutraliza parte do benefício do aumento da renda. A
inadimplência da pessoa física atingiu o pico de 4,3% em maio e foi de 4,1% em
agosto, de acordo com o BC. Em algumas linhas está mais elevada: é de 7,1% no
crédito pessoal não consignado e chega 8,4% no cartão de crédito. O total de
brasileiros negativos nos birôs de crédito chega a 70 milhões. Daí as fichas
jogadas no Desenrola.
Se o aumento da renda preocupa o BC, é dos fatores com que conta o governo para estimular o crescimento da economia, ao lado da redução do desemprego e dos juros. Mas há dúvidas sobre a sustentabilidade desse quadro no próximo ano, dada a previsão de crescimento menor do PIB e de uma inadimplência ainda alta.
Balbúrdia fiscal
Folha de S. Paulo
Prevê-se megabloqueio de gastos em 2024, o
que deve acirrar pressão contra meta
A pouco mais de dois meses da virada do ano,
ainda é total a indefinição quanto à política fiscal em 2024 —isto é, sobre
como o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai gerir as contas do Tesouro
Nacional de modo a influenciar inflação, taxas de juros e confiança de
consumidores e empresários.
Como a Folha noticiou,
especialistas já anteveem a necessidade de um bloqueio
descomunal de despesas logo no início do exercício, a fim de
buscar o cumprimento da meta de eliminar o déficit orçamentário. As estimativas
vão de R$ 30 bilhões a mais de R$ 50 bilhões.
A mera cogitação de um contingenciamento de
tais proporções já basta para evidenciar que o Orçamento do próximo ano está
baseado em previsões bem pouco confiáveis para a arrecadação de impostos. O
problema é maior, porém.
A rigor, nem mesmo existe meta fiscal
formalizada. A promessa de equilibrar gastos e receitas está no projeto de Lei
de Diretrizes Orçamentárias, que antecede a elaboração do Orçamento e deveria
ter sido aprovada no primeiro semestre —mas, espantosamente, ainda tramita no
Congresso.
O atraso não se deve a algum descuido nas
relações do Planalto com sua base parlamentar. Estão em jogo pressões dentro e
fora do governo pela adoção de uma meta mais frouxa ou, como preferem seus
defensores, mais realista.
Entre eles
está o próprio relator da LDO, o deputado Danilo Forte (União
Brasil-CE), que partilha do entendimento quase unânime de que será muito
difícil que se materializem todas as receitas esperadas no projeto de lei
orçamentária.
Os argumentos têm lá sua lógica, mas o abandono
formal do déficit zero elevaria sobremaneira as ameaças às contas públicas.
Estaria aberta a porta para todo tipo de demanda da área política do governo e
dos partidos aliados.
É melhor, pois, que se façam todos os
esforços possíveis para ao menos aproximar o resultado do Tesouro do equilíbrio
desejado —o que, de todo modo, apenas retardaria a escalada da dívida pública.
Está claro que qualquer plano crível de
ajuste orçamentário de longo prazo precisa passar pelo controle dos gastos
obrigatórios, casos de Previdência, pessoal, saúde, educação e benefícios
sociais.
Não se trata de cortar programas
prioritários, mas de regular sua expansão de modo que se submetam à receita
disponível sem tirar o espaço de outros setores.
O governo Lula não apenas recusou esse debate
como restabeleceu regras capazes de elevar permanentemente tais despesas. Com
isso, pode ser obrigado a escolher entre os riscos políticos de um megabloqueio
dos demais gastos públicos e os riscos econômicos de aprofundar a balbúrdia
fiscal.
Equador em transição
Folha de S. Paulo
Eleito, liberal Noboa deve buscar conter
espiral da violência e erosão democrática
Ainda em meio à deterioração institucional
que reuniu protestos violentos, dissolução do Parlamento, antecipação
das eleições e até o
assassinato de um presidenciável, a vitória do liberal
Daniel Noboa neste domingo (15), sem maiores sobressaltos até
aqui, é um sopro de esperança no conturbado cenário político e social do Equador.
O empresário e ex-deputado de 35 anos —o mais
jovem presidente da história do país— venceu no segundo turno a esquerdista
Luisa González por 52% a 48% dos votos.
É mais uma dura derrota do correísmo,
movimento personalista ligado ao ex-mandatário
Rafael Correa (2007-17), condenado por corrupção e hoje asilado
na Bélgica.
Em gesto alentador, González parabenizou o
adversário e deu a entender que sua coalizão está disposta a negociar reformas
prementes no Legislativo.
Um mínimo de unidade nacional será vital para
o exíguo mandato de Noboa, que deverá assumir em dezembro e governar a nação
andina por apenas um ano e meio.
Mais afeito a atividades empresariais, o
futuro líder teve um mandato discreto e era figura pouco
conhecida até o primeiro turno.
É imperioso, pois, que anuncie seu gabinete
com celeridade e forme alianças ao centro e à esquerda no Legislativo. Como bem
sabe o atual presidente, o centro-direitista Guillermo Lasso, a falta de
composição acabou impulsionando pedidos de impeachment que desaguaram na
dissolução do Parlamento e no pleito fora de hora.
A espiral de violência,
inflamada pela guerra do
narcotráfico, triplicou nos últimos anos a taxa de homicídios. O símbolo
maior desse descontrole foi a morte a tiros,
em agosto, do presidenciável Fernando Villavicencio, cujos mandantes ainda são
desconhecidos.
Adepto, ao que parece, de uma linha-dura para
conter a assustadora insegurança, Noboa precisa delinear melhor como serão as
tais "prisões-barco", concebidas para isolar os criminosos mais perigosos.
Também deve detalhar os planos para investir em inteligência e prevenção e
equipar as polícias.
Na economia, debilitada após a má gestão da
pandemia, as promessas de criação de empregos e incentivos fiscais são
desafiadoras diante da urgência em ampliar o crédito e atrair investimentos.
Guardadas peculiaridades e proporções, o desgaste da democracia equatoriana é triste reflexo da polarização política que grassa em boa parte da América Latina.
O dever moral, legal e estratégico de Israel
O Estado de S. Paulo
Ao extrapolar a violência, Hamas espera que Israel extrapole também. Ceder à tentação violaria a moral e as leis da guerra e arriscaria a segurança de Israel e a legitimidade de sua defesa
O assalto a Israel no dia 7 foi o maior
massacre de judeus num só dia desde o Holocausto e o mais sangrento em 100 anos
de conflito com os palestinos. A selvageria foi comparada ao 11 de Setembro,
mas, proporcionalmente, morreram 10 vezes mais israelenses que americanos –
fora os reféns. E a barbárie não foi perpetrada só por uma milícia clandestina,
mas pelo governo “legítimo” (com muitas aspas) de Gaza. É humanamente
compreensível a tentação de uma retaliação avassaladora. Mas – sem renunciar a
seus imperativos de segurança, o que implica obliterar o potencial de agressão
do Hamas – Israel tem o dever de evitar punições coletivas aos palestinos.
Ceder à tentação não só violaria a moral e as
leis da guerra, como também seria contraproducente para os objetivos de curto
prazo de Israel, de garantir a segurança de seu povo, e os de longo prazo, de
convivência pacífica com os palestinos, por quatro razões: isso nutriria a
instabilidade e o rancor que abastecem o extremismo; aumentaria o risco de
insurgências dos palestinos da Cisjordânia e de ataques em outras frentes, como
no norte, pelo Hezbollah; poderia implodir o processo de “normalização” com os
países árabes, essencial para dissuadir a teocracia xiita do Irã; e
deterioraria a legitimidade da guerra de defesa de Israel ante a comunidade
internacional. São esses os objetivos do Hamas.
Aos olhos do mundo, o ultraje ante a reação
de Israel versa sobre os bombardeios, a ordem de evacuação do norte de Gaza e o
“cerco completo”, “sem eletricidade, sem comida, sem combustível”. Entidades
humanitárias advertem que essas ações violam a Carta da ONU, que estabelece o
direito de autodefesa, desde que o uso da força seja necessário e proporcional.
Apesar da retórica maximalista dos líderes israelenses,
há sinais de que estão conscientes dos riscos. Na sexta-feira, por exemplo, uma
chuva de folhetos israelenses caiu sobre o norte de Gaza alertando os civis que
deveriam se retirar em 24 horas “para sua própria segurança”. O prazo expirou
no sábado.
A extensão dos bombardeios e do bloqueio
israelense precisa ser apurada. Se os primeiros forem indiscriminados e o
segundo “total”, podem constituir efetivamente crimes de guerra. Mas, até onde
se sabe, Israel – se não por princípios morais, por cálculo estratégico –
sempre evitou bombardeios indiscriminados, e há notícias de que suas
autoridades trabalham privadamente com EUA e Egito (que também bloqueia Gaza)
para garantir que alguns suprimentos cheguem ao sul do território. Como disse o
secretário de Estado americano, Antony Blinken, ao lado do premiê Benjamin
Netanyahu, Israel tem o direito de se defender, mas deve fazê-lo levando em
conta “valores compartilhados (com os EUA) de vida e dignidade humana”,
evitando, tanto quanto possível, que civis sejam atingidos. Os próximos dias
dirão se isso foi feito.
De todo modo, qualquer análise de
“necessidade” e “proporcionalidade” deve considerar que o Hamas não é um
inimigo convencional. Governos em guerra tentam proteger seus cidadãos, mas é
parte da estratégia do Hamas usar civis como bucha de canhão e escudos humanos.
Isso aumenta exponencialmente o risco de danos colaterais em operações
militares legítimas. Por anos, “fizemos (Israel) acreditar que o Hamas estava
ocupado governando Gaza, e queria focar nos 2,5 milhões de palestinos lá”,
admitiu, em entrevista, Ali Baraka, um líder do Hamas, enquanto “sob a mesa,
preparávamos este grande ataque”. Abu Ghazaleh, um empresário apoiador do
Hamas, resumiu: “Israel não sacrificaria uma só pessoa”, enquanto “uma mãe
palestina diz: ‘Dei à luz seis filhos, para que três possam morrer na
revolução’”.
Isso obviamente não expressa a opinião da
maioria dos palestinos. Mas, mesmo sob um regime de fanáticos autoritários,
essa maioria precisa pressionar o Hamas a ao menos liberar seus reféns. Como
disse a ex-premiê israelense Golda Meir, “só teremos paz com os árabes quando
eles amarem seus filhos mais do que nos odeiam”. Essa paz é impossível com o
Hamas. Mas, assim como os israelenses precisam cumprir seus deveres morais e
legais para conquistá-la, os palestinos precisam provar que também lutam por
ela.
O comício de Barroso em Paris
O Estado de S. Paulo
Para o público europeu, não acostumado a
ouvir discursos políticos de ministros de cortes superiores, fala de Barroso
sobre como enfrentar mazelas do Brasil soou como ato de campanha
Em Paris, o presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), Luís Roberto Barroso, proferiu um discurso em evento privado,
organizado por um grupo brasileiro. A rigor, o ministro do Supremo nem sequer
deveria estar lá. Como magistrado, só deve falar nos autos e no âmbito
acadêmico. O ato não era uma coisa nem outra. De toda forma, nestes tempos
esquisitos, tornou-se frequente que ministro do STF participe de encontros
privados para oferecer conselhos, apresentar suas opiniões sobre o País e a
sociedade brasileira e, principalmente, confraternizar com os participantes. Os
cânones republicanos já foram um pouco menos laxos.
Mas o descompasso entre a condição de juiz e
o discurso do ministro Luís Roberto Barroso não passou despercebido em Paris.
Aos presentes, entre os quais o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy, Barroso
fez uma série de comentários sobre como enfrentar o que ele enxerga como os
principais problemas do Brasil: defendeu mais investimentos em educação e
tecnologia, criticou o “grau perverso de desigualdade” no País, advogou pelo
crescimento econômico, o combate à pobreza e a defesa do meio ambiente e
lamentou o atraso do saneamento básico. Um desavisado poderia pensar que se
tratava de um candidato a presidente e que o evento em questão era um comício.
Pois foi exatamente por isso que o ex-presidente
Sarkozy disse a Barroso: “O senhor está pronto para uma nova presidência, para
uma outra presidência”, referindo-se obviamente à Presidência da República. E
para que não pairasse nenhuma dúvida, Sarkozy disse que o discurso de Barroso
tinha “orientação política forte”, sendo, portanto, “muito mais que um discurso
de orientação jurídica”.
Há aqui uma lição que não deve ser
desprezada. A compreensão alargada das competências e atribuições do Supremo é
frequentemente apresentada como o ápice da teoria constitucional contemporânea.
A atuação do Judiciário sobre áreas do Executivo e, especialmente, do
Legislativo representaria um enorme avanço da modernidade, como caminho de
efetiva proteção dos direitos fundamentais.
Tal proatividade do Judiciário tem em Barroso
seu maior defensor, a ponto de o ministro dizer e repetir, a quem interessar
possa, que a missão do Supremo é “empurrar a história”. No entanto, essa
retórica, para o público europeu, é imediatamente percebida como de fato é: um
conjunto de ideias de conteúdo político, e não jurídico.
A Constituição brasileira é abrangente, mas,
por mais ampla que seja, não trata como sinônimos a política e a justiça, como
se fossem substituíveis ou intercambiáveis. São fenômenos diversos, que têm
âmbitos e procedimentos decisórios próprios. E tudo isso por um motivo simples
e fundamental: a Constituição de 1988 veio estabelecer o Estado Democrático de
Direito, no qual existem a separação e a independência dos Poderes.
O Estado Democrático de Direito brasileiro
não é uma realidade peculiar, como se possuísse uma configuração
extraordinariamente única no mundo, com o Judiciário tendo ascendência sobre os
outros Poderes e podendo ditar o que eles devem fazer – bastando, para tanto,
entender que Legislativo e Executivo não estão promovendo adequadamente o
“progresso”. Não é isso o que dispõe a Constituição de 1988, que tem como um de
seus pilares o sistema de freios e contrapesos, inspirado em Montesquieu
(1689-1755), filósofo conterrâneo de Sarkozy.
Mais do que remeter a eventuais planos
políticos do ministro Barroso, o comentário do ex-presidente francês deve
servir de advertência a todo o STF, como forte recomendação ao caminho da
autocontenção do Judiciário. Quando a autocompreensão do Supremo brasileiro é
comunicada mundo afora, causa surpresa. Pensa-se logo em política, e não na
seara própria de um tribunal constitucional, o direito. Se Sarkozy foi
sarcástico de propósito ou sem querer, não importa: o que interessa é que sua
“sugestão” de que Barroso dispute a Presidência da República mostra que nem
todos consideram normal que juízes falem e atuem como políticos. Como sabem bem
os que vivem em países de forte tradição republicana, como a França, essa
separação é garantia fundamental do regime democrático.
Sob o poder do narcotráfico
O Estado de S. Paulo
Eleito presidente do Equador, o conservador
Noboa deixa em aberto combate ao crime organizado
O Equador concluiu a eleição presidencial
mais violenta de sua história recente no último dia 15, com a vitória do
empresário e deputado de centro-direita Daniel Noboa para um mandato-tampão de
18 meses. Na campanha eleitoral que custou a vida do candidato de esquerda
Fernando Villavicencio, assassinado pouco antes do primeiro turno de agosto, a
democracia felizmente prevaleceu. Não é pouco em uma nação sul-americana
convertida em paraíso do crime organizado. Principais vítimas da escalada de
violência, os equatorianos nada esperam do novo governo além de uma política de
segurança pública com mínima eficácia. Se Noboa cumprirá suas parcas promessas,
é outra questão.
Do ponto de vista político, o resultado
eleitoral expressa a opção da maioria dos equatorianos por um nome fora dos
vícios dos circuitos tradicionais – fenômeno observado em outros países. Marca
também a segunda derrota sucessiva da corrente populista de esquerda do
ex-presidente Rafael Correa, exilado nos Estados Unidos. Luiza González, sua
afilhada política, reconheceu a derrota ainda no domingo, quando sublinhou
“jamais ter feito um chamado para incendiar uma cidade nem gritar que houve
fraude” – alusão à reação bolsonarista às eleições brasileiras de 2022. O resultado
assinala ainda o ocaso da gestão do conservador Guillermo Lasso, marcada por um
processo de impeachment e pela antecipação das eleições.
Como no primeiro turno, em 20 de agosto, a
votação do último domingo ocorreu sob vigilância das Forças Armadas e da
Polícia Nacional. Não houve registro de incidentes graves. Diante de imagens de
policiais e soldados desprovidos de equipamentos básicos de proteção, porém,
torna-se inevitável considerar eventuais interesses dos cartéis mexicanos,
colombianos e albaneses presentes no Equador no transcurso pacífico das
votações.
Mesmo protegido com colete à prova de balas e
capacete durante a campanha, Noboa pouco detalhou suas pretensões na área de
segurança pública. Preferiu insistir na geração de empregos numa economia
dolarizada e ainda fragilizada pelos efeitos da pandemia, cujo principal
produto de exportação é a banana – alma dos negócios da Noboa Corporation, da
qual é herdeiro. Nos comícios, prometeu mais recursos e novas tecnologias para
a polícia combater o tráfico de drogas, que escoam pelos portos do país para a
Europa, e a escalada de violência, que levou milhares de equatorianos para a
fronteira do México com os Estados Unidos. Nada substancial.
Não se sabe ao certo se ou como o futuro governo enfrentará o crime organizado incrustado no Equador. Pode-se antever, entretanto, que qualquer medida nesse sentido será respondida com violência. Ao assumir a presidência do Equador, Noboa tornar-se-á o alvo número um dos cartéis. Mais do que nunca, o Equador necessitará do apoio da comunidade internacional, se vier a mover uma agenda de segurança pública factível. Porém, nada será possível sem uma concertação com a oposição na Assembleia Nacional, que será chamada a decidir se mais valem suas ambições para as próximas eleições ou o principal interesse do país.
Uma saída pela diplomacia
Correio Braziliense
"À medida que lamentamos as vidas
perdidas e o sofrimento infligido a tantas famílias na região, os países devem
dobrar a aposta no diálogo e buscar incansavelmente uma solução pacífica"
É com consternação e impotência que o mundo
assiste, desde 7 de outubro, às cenas da guerra deflagrada entre Israel e o
grupo radical islâmico Hamas, que governa a Faixa de Gaza. O conflito, que já
matou cerca de 1.400 israelenses e 2.500 palestinos, é o mais sério em décadas,
e as imagens de todas as vítimas da violência dos dois lados têm chocado a
opinião pública.
Nos últimos dias, a escalada de tensão tem
sido constante. Israel determinou uma evacuação geral do norte da Faixa de
Gaza, movimentando 1,1 milhão de pessoas pelo território, em um óbvio
preparativo para uma invasão por terra. Do outro lado, o Hamas promete resistir
à entrada do Exército israelense, e grupos radicais, como o Hezbollah, do
Líbano, têm prometido se engajar no conflito, o que tem potencial para arrastar
toda a região em uma guerra generalizada, envolvendo, ainda, países como Síria,
Arábia Saudita e Irã.
Os organismos internacionais, por enquanto,
voltaram a decepcionar. As reuniões na Organização das Nações Unidas (ONU), um
fórum que deveria ser a voz da razão e da cooperação internacional, têm se
mostrado frustrantes. É inegável que o Conselho de Segurança, com seus vetos e
geopolítica muitas vezes paralisantes, não tem sido capaz de fornecer uma
solução eficaz, como a reunião na última sexta-feira provou. No encontro,
presidido pelo Brasil, as potências não conseguiram chegar a um consenso para a
mediação do conflito, nem sobre a abertura de corredores humanitários na Faixa
de Gaza para a passagem de alimentos, medicamentos, água, combustíveis e
evacuação de civis, pedido reforçado, inclusive, pelo secretário-geral da ONU,
António Guterres.
Mas isso não significa que se deve abandonar
a busca por uma solução diplomática. Pelo contrário: mais do que nunca, os
países precisam se unir para pressionar por uma resolução pacífica deste
conflito, e a comunidade internacional deve assumir um papel de liderança na
busca pela paz. Isso significa pressionar por um cessar-fogo imediato e
incondicional, para dar espaço à negociação. Também significa apoiar esforços
de mediação, trazendo todas as partes envolvidas à mesa de negociações, mesmo
que isso seja doloroso e demande concessões difíceis de ambos os lados. Dentro
desse cenário, os esforços que o Brasil vem fazendo na busca por uma ampliação do
diálogo e da mediação são louváveis.
É fundamental, também, entender que a paz não
será conquistada sem Justiça. As preocupações legítimas de ambas as partes,
como a segurança de Israel e os direitos do povo palestino, devem ser abordadas
de maneira justa e equitativa. Além disso, os atos do Hamas e o uso
desproporcional da força pelo Exército israelense devem ser investigados por
comissões independentes e, eventualmente, ter seus responsáveis punidos. E
todos os envolvidos, incluindo os países vizinhos e as potências globais,
especialmente os Estados Unidos, têm de entender que todos vão precisar ceder
em algum ponto para que o conflito se abrevie e seja alcançada uma situação
tolerável para as populações civis, as principais vítimas do conflito até aqui.
À medida que lamentamos as vidas perdidas e o sofrimento infligido a tantas famílias na região, os países devem dobrar a aposta no diálogo e buscar incansavelmente uma solução pacífica. A diplomacia pode ser um caminho difícil, mas é o único caminho. A alternativa a ela é a continuação de uma guerra que tem levado a um custo humano inaceitável e a um futuro incerto.
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