Carta Capital
Muito além do discurso, os Estados Nacionais se empenham em
proteger suas empresas na arena global
O Acordo União
Europeia-Mercosul sofre críticas e restrições de gregos e
troianos. CartaCapital já
usufruiu o privilégio de contar com uma certeira investida de Paulo Nogueira
Batista Jr.
Obedecendo às minhas idiossincrasias, vou incomodar o leitor com
considerações peregrinas a respeito das proezas do protecionismo capitalista de
todos os tempos e em todos os tempos.
Nos idos de 2017, as manchetes proclamavam a iminência de uma
guerra comercial deflagrada pela decisão protecionista de Donald Trump.
A imposição de tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio suscitou
reações da União Europeia, da China e até mesmo dos submissos do planeta.
As palavras “protecionista” e “livre-cambista” são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua do que aquela narrada pelos fundamentalistas – de um lado e de outro – a respeito do desenvolvimento das relações econômicas internacionais. Protecionismo e livre-cambismo convivem como cães e gatos. Brigam o tempo todo, mas são inseparáveis.
No fim do século XIX, no apogeu da ordem liberal burguesa, a
expansão do comércio e das finanças internacionais estava fundada nas relações
simbióticas entre o liberalismo da Inglaterra hegemônica e as políticas
protecionistas de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados
Unidos.
Pérfidas considerações sobre o celebrado liberalismo da Inglaterra
pedem passagem. Na segunda metade do século XIX, depois de suspender, em 1841,
a proibição de exportar máquinas e artesãos, revogar, nos idos de 1846, a
proteção à sua agricultura amparada pela Corn Law, o liberal-mercantilismo da
pérfida Albion comandou a expansão do comércio e das finanças internacionais.
Já dominado pelos interesses financeiros da City, o
liberal-mercantilismo da Inglaterra hegemônica criou as condições para as
políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização dos
retardatários europeus e dos Estados Unidos. Uma coisa é uma coisa, outra coisa
é a mesma coisa, ensinam as cartilhas da dialética elementar para positivistas
teimosos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos abriram seu
mercado para as exportações da Europa e do Japão em reconstrução, ao mesmo
tempo que suas empresas migravam em massa para as regiões de crescimento mais
rápido.
A boa história econômica ensina que os Estados Unidos têm uma
longa e persistente tradição de práticas protecionistas. Os primeiros passos da
caminhada protecionista estão recomendados no Relatório Sobre as Manufaturas,
de Alexandre Hamilton, publicado em 1791. Hamilton, então secretário do Tesouro
dos Estados Unidos, fez a crítica das teorias fisiocráticas que postulavam a
superioridade da agricultura. Desenvolveu uma brilhante argumentação em defesa
da manufatura como fonte da ampliação da divisão do trabalho, ganhos de
produtividade e de maior progresso da própria agricultura.
No livro Origens da Democracia e da Ditadura, Barrington Moore Jr.
analisa a Guerra Civil americana a partir das relações contraditórias, mas não
opostas, entre o Sul escravagista livre-cambista e o Norte em processo de
industrialização, turbinado com mão de obra assalariada e fortes doses de
protecionismo.
Paul Bairoch, Douglas North, Charles Kindleberger e Carlo Cippola
registram a persistência das práticas protecionistas americanas ao longo do
século XIX e da primeira metade do século XX, até o fim da Segunda Guerra
Mundial. O aumento brutal das tarifas promovido pelo Smoot and Hawley Act, em
1930, inaugurou uma sombria temporada de competição protecionista.
No movimento de desviar o desemprego para o território do outro,
seguiram-se as desvalorizações competitivas. Iniciado com a saída da Inglaterra
do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho teve sequência na
desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933.
Os mais pragmáticos sabem que não é possível escapar da
“politização” da economia
Essas reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio
e suscitaram tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas
propagavam-se livremente, sem qualquer capacidade de coordenação por parte dos
governos. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que
atingiu indistintamente os preços dos bens e dos ativos.
A contração do comércio mundial, provocada pelas desvalorizações
competitivas e pelos aumentos de tarifas, deu origem a práticas de comércio
bilateral e à adoção de controles cambiais. Na Alemanha nazista, tais métodos
de administração cambial incluíam a suspensão dos pagamentos das reparações e
dos compromissos em moeda estrangeira, nascidos do ciclo de endividamento que
se seguiu à estabilização do marco em 1924.
Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, o projeto americano de
construção da ordem econômica internacional foi concebido sob inspiração do
ideário rooseveltiano. Tinha o propósito de promover a expansão do comércio
entre as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências
financeiras e de crises de balanço de pagamentos.
A ideia-força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a
necessidade de criação de regras destinadas a garantir a expansão do comércio e
o ajustamento dos balanços de pagamentos, mediante o adequado abastecimento de
liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação das
forças deflacionárias e as tentações do protecionismo.
É insensato imaginar que o desempenho das empresas na arena global
possa prescindir do apoio decisivo dos respectivos Estados Nacionais. A quem
for permitido ver além do mundo das sombras do consumismo ideológico de massa,
será revelada uma ação agressiva dos Estados Nacionais na defesa da
“competitividade” de suas empresas. Esse objetivo tornou-se de tal modo
predominante que os governos não hesitam em distribuir favores e
magnanimidades, com o propósito de flexionar a musculatura das empresas
nacionais e torná-las capazes de dar combate dentro e fora do território
nacional.
O Estado está cada vez mais envolvido na sustentação das condições
requeridas para o bom desempenho das suas empresas na arena da concorrência
generalizada e universal.
Os mais pragmáticos sabem que não é possível escapar da
“politização” da economia. As transformações ocorridas nas últimas décadas não
se propõem a reduzir o papel do Estado, nem “enxugá-lo”, mas almejam aumentar
sua eficiência como agente da acumulação capitalista, em detrimento do seu
papel “social”. •
*Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023
Um comentário:
Muito bom e esclarecedor o artigo.
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