terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Acordos e desacordos

Carta Capital

Muito além do discurso, os Estados Nacionais se empenham em proteger suas empresas na arena global

Acordo União Europeia-Mercosul sofre críticas e restrições de gregos e troianos. CartaCapital já usufruiu o privilégio de contar com uma certeira investida de Paulo Nogueira Batista Jr.

Obedecendo às minhas idiossincrasias, vou incomodar o leitor com considerações peregrinas a respeito das proezas do protecionismo capitalista de todos os tempos e em todos os tempos.

Nos idos de 2017, as manchetes proclamavam a iminência de uma guerra comercial deflagrada pela decisão protecionista de Donald Trump. A imposição de tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio suscitou reações da União Europeia, da China e até mesmo dos submissos do planeta.

As palavras “protecionista” e “livre-cambista” são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua do que aquela narrada pelos fundamentalistas – de um lado e de outro – a respeito do desenvolvimento das relações econômicas internacionais. Protecionismo e livre-cambismo convivem como cães e gatos. Brigam o tempo todo, mas são inseparáveis.

No fim do século XIX, no apogeu da ordem liberal burguesa, a expansão do comércio e das finanças internacionais estava fundada nas relações simbióticas entre o liberalismo da Inglaterra hegemônica e as políticas protecionistas de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos.

Pérfidas considerações sobre o celebrado liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX, depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos, revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura amparada pela Corn Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio e das finanças internacionais.

Já dominado pelos interesses financeiros da City, o liberal-mercantilismo da Inglaterra hegemônica criou as condições para as políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa, ensinam as cartilhas da dialética elementar para positivistas teimosos.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos abriram seu mercado para as exportações da Europa e do Japão em reconstrução, ao mesmo tempo que suas empresas migravam em massa para as regiões de crescimento mais rápido.

A boa história econômica ensina que os Estados Unidos têm uma longa e persistente tradição de práticas protecionistas. Os primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no Relatório Sobre as Manufaturas, de Alexandre Hamilton, publicado em 1791. Hamilton, então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, fez a crítica das teorias fisiocráticas que postulavam a superioridade da agricultura. Desenvolveu uma brilhante argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do trabalho, ganhos de produtividade e de maior progresso da própria agricultura.

No livro Origens da Democracia e da Ditadura, Barrington Moore Jr. analisa a Guerra Civil americana a partir das relações contraditórias, mas não opostas, entre o Sul escravagista livre-cambista e o Norte em processo de industrialização, turbinado com mão de obra assalariada e fortes doses de protecionismo.

Paul Bairoch, Douglas North, Charles Kindleberger e Carlo Cippola registram a persistência das práticas protecionistas americanas ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, até o fim da Segunda Guerra Mundial. O aumento brutal das tarifas promovido pelo Smoot and Hawley Act, em 1930, inaugurou uma sombria temporada de competição protecionista.

No movimento de desviar o desemprego para o território do outro, seguiram-se as desvalorizações competitivas. Iniciado com a saída da Inglaterra do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho teve sequência na desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933.

Os mais pragmáticos sabem que não é possível escapar da “politização” da economia

Essas reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio e suscitaram tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se livremente, sem qualquer capacidade de coordenação por parte dos governos. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos bens e dos ativos.

A contração do comércio mundial, provocada pelas desvalorizações competitivas e pelos aumentos de tarifas, deu origem a práticas de comércio bilateral e à adoção de controles cambiais. Na Alemanha nazista, tais métodos de administração cambial incluíam a suspensão dos pagamentos das reparações e dos compromissos em moeda estrangeira, nascidos do ciclo de endividamento que se seguiu à estabilização do marco em 1924.

Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, o projeto americano de construção da ordem econômica internacional foi concebido sob inspiração do ideário rooseveltiano. Tinha o propósito de promover a expansão do comércio entre as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras e de crises de balanço de pagamentos.

A ideia-força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a necessidade de criação de regras destinadas a garantir a expansão do comércio e o ajustamento dos balanços de pagamentos, mediante o adequado abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação das forças deflacionárias e as tentações do protecionismo.

É insensato imaginar que o desempenho das empresas na arena global possa prescindir do apoio decisivo dos respectivos Estados Nacionais. A quem for permitido ver além do mundo das sombras do consumismo ideológico de massa, será revelada uma ação agressiva dos Estados Nacionais na defesa da “competitividade” de suas empresas. Esse objetivo tornou-se de tal modo predominante que os governos não hesitam em distribuir favores e magnanimidades, com o propósito de flexionar a musculatura das empresas nacionais e torná-las capazes de dar combate dentro e fora do território nacional.

O Estado está cada vez mais envolvido na sustentação das condições requeridas para o bom desempenho das suas empresas na arena da concorrência generalizada e universal.

Os mais pragmáticos sabem que não é possível escapar da “politização” da economia. As transformações ocorridas nas últimas décadas não se propõem a reduzir o papel do Estado, nem “enxugá-lo”, mas almejam aumentar sua eficiência como agente da acumulação capitalista, em detrimento do seu papel “social”. •

*Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom e esclarecedor o artigo.