terça-feira, 12 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais /Opiniões

Plano econômico de Milei aponta direção certa

O Globo

Pode haver certo exagero ou voluntarismo, mas as ideias do novo presidente têm base na realidade

O novo ministro da Economia da Argentina, Luis Caputo, deverá anunciar hoje as primeiras medidas do recém-empossado governo Javier Milei. No discurso de posse, Milei já deu o tom do que está por vir: “No hay plata” (“não tem dinheiro”). Não haverá, segundo ele, espaço para gradualismo no ajuste fiscal. O diagnóstico está correto e nada tem de novo. O inédito foram os aplausos que se seguiram. Ontem o porta-voz presidencial, Manuel Adorni, voltou ao tema e declarou: “O equilíbrio fiscal será rigorosamente respeitado”.

A Argentina vive há anos acima de suas possibilidades. Desde 2009 o governo fecha as contas no vermelho. Sucessivas gestões peronistas preservaram subsídios e benesses financiando o gasto público com uma dívida insustentável. A expectativa é que, em 2023, a inflação passe de 200%. Como reação há um movimento de defesa: busca por dólares e ativos estáveis; gatilhos para compensar perdas monetárias. A indexação dá a sensação de proteção, mas torna mais difícil desarmar a espiral inflacionária, como sabe todo brasileiro que viveu nos anos 1980 e 1990.

Milei já deu provas de ter noção do desafio. Parece saber que: 1) derrotar a disparada dos preços é sua maior missão; 2) não fará isso sem reduzir o gasto público; 3) o ajuste fiscal terá efeito recessivo; 4) é ilusão contar com aplausos depois do choque; 5) qualquer plano abrirá espaço à oposição. Depois da posse, ele ressaltou a herança — “nenhum governo recebeu uma situação pior do que estamos recebendo” —, antecipou a estratégia — “não há alternativa ao choque” —, previu tempos difíceis — com impacto negativo na “atividade, emprego, quantidade de pobres e indigentes” — e conclamou dirigentes políticos, sindicais e empresariais a se unirem “à nova Argentina”.

É louvável que enfim um presidente argentino descreva a realidade como ela é. Mesmo que possa haver exagero no tom ou na dose, parece claro que suas medidas irão na direção certa. Mas, infelizmente, isso não é garantia de sucesso. O plano anunciado hoje terá de enfrentar barreiras, independentemente dos detalhes.

Uma primeira dificuldade é a conjuntura. As reservas em moeda forte estão em patamar negativo, e a Argentina tem uma conta de mais de US$ 4 bilhões a pagar ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e a financiadores privados em janeiro. Outra é o próprio governo. Embora Milei tenha tido a perspicácia de montar uma equipe econômica sólida e de deixar de lado os desvarios da campanha — como o fim do Banco Central e a dolarização —, ainda transparece em seu discurso certo voluntarismo. Ele chegou a mencionar a possibilidade de a inflação chegar a 15.000%, um disparate.

Além de tudo, Milei terá de encarar a tarefa nada trivial de encontrar apoio entre deputados e senadores. Seu partido e as adesões que conquistou até o momento não são suficientes para aprovar medidas no Parlamento com tranquilidade. Ainda mais se forem medidas drásticas como ele deu a entender. Depois da posse, Milei falou do lado de fora do Congresso, de frente para a população, mas de costas para o Parlamento. Para que tenha sucesso, ele deverá ter a habilidade para dar meia-volta e atender às demandas políticas necessárias para aprovar a pauta econômica, ainda que decepcione seus eleitores. O pior que pode acontecer é perdurar o confronto entre um presidente populista e um Congresso hostil.


Pacote aprovado na Câmara é avanço no combate à violência contra mulher

O Globo

Medidas incluem protocolo para bares e casas noturnas e aumento das penas para agressões diante de pais e filhos

É oportuno o pacote de 14 Projetos de Lei aprovados pela Câmara na semana passada para combater a violência contra as mulheres. Entre as iniciativas, estão a criação de um protocolo para estabelecimentos que vendem bebida alcoólica, a criminalização da divulgação de montagens de fotos e vídeos íntimos sem autorização — prática nefasta facilitada pelas ferramentas da inteligência artificial — e o aumento das penas para agressões presenciadas por filhos ou pais da vítima. A sociedade não pode se omitir diante da epidemia de violência doméstica que choca o país.

Um dos projetos institui um protocolo apelidado “não é não” em bares, boates e casas noturnas, com o objetivo de proteger as vítimas de assédio e agressões facilitando as denúncias, que muitas vezes não chegam ao conhecimento das autoridades devido à intimidação das mulheres. Os estabelecimentos terão de afixar em local visível informações sobre como acionar a Polícia Militar e a Central de Atendimento à Mulher. Precisarão ainda oferecer ao menos um funcionário treinado para cumprir o protocolo e orientar a vítima. E deverão isolar o local onde houve agressões, guardar por pelo menos 30 dias imagens de câmeras de segurança e identificar testemunhas que possam ajudar na investigação.

A medida, já adotada noutros países e cidades, foi importante para dar andamento ao caso envolvendo o jogador brasileiro Daniel Alves, acusado de agressão sexual por uma jovem de 23 anos numa boate em Barcelona. O atleta, que nega o crime, está preso desde janeiro. A cidade da Catalunha criou em 2018 o protocolo “No Callen” (“não se calem”), estabelecendo como casas noturnas deveriam agir em casos de violência contra mulheres. A ideia surgiu depois de uma pesquisa apontar que esses eram os ambientes mais propícios à violência sexual.

A proposta que criminaliza a divulgação de fotos e vídeos íntimos manipulados — que precisa passar ainda pelo Senado — ganha relevância depois do caso que abalou um tradicional colégio particular do Rio. Estudantes do 7º ao 9º ano são suspeitos de ter usado um aplicativo para adulterar imagens removendo as roupas de adolescentes e depois disseminá-las por aplicativos de mensagens. O episódio acendeu o alerta sobre a necessidade de regulação.

Outro projeto que seguirá ao Senado aumenta a punição de agressores de mulheres (entre um terço e metade da pena) para casos em que a violência doméstica é praticada na presença (física ou virtual) dos filhos ou pais da vítima. Não há dúvida de que os efeitos dos crimes nas crianças são devastadores.

Nos últimos anos, a violência contra as mulheres tem desafiado governos. Em 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os feminicídios aumentaram 6,1%; as tentativas, 16,9%. Os estupros cresceram 8,2% e bateram recorde; as agressões domésticas subiram 3%; os registros de assédio sexual saltaram quase 50%. Evidentemente, os projetos aprovados na Câmara não bastarão para eliminar o problema. Mas sem dúvida contribuirão para reduzi-lo.

Pobreza cai, mas ainda atinge quase um terço da população

Valor Econômico

Para reverter o quadro é necessário não só focalizar melhor e aprimorar os programas sociais, mas avançar na educação

Nada menos do que 10,2 milhões de brasileiros saíram da pobreza no ano passado, o equivalente a quase todos os habitantes do Rio Grande do Sul. O percentual de pessoas pobres passou de 36,7% para 31,6% da população brasileira. Houve redução também da extrema pobreza, de 9% para 5,9% em 2022, ou queda de 6,5 milhões de pessoas - é o menor patamar desde 2015, quando essa faixa era de 5,6%. O levantamento faz parte da Síntese de Indicadores Sociais, elaborada pelo IBGE, que considera os parâmetros do Banco Mundial para a definição das faixas de renda.

Há importantes diferenças regionais, como se poderia esperar. No Nordeste, mais da metade da população está abaixo da linha da pobreza, precisamente 51%, e 11,8% estão na extrema pobreza; e no Norte, 46,2% e 8%, respectivamente. O percentual cai para 17,1% e 2,5% na região Sul; para 21,3% e 2,8% no Centro-Oeste; e para 23% e 3,3% no Sudeste.

Os números absolutos indicam que há muito por fazer: 67,8 milhões de brasileiros ainda estavam na pobreza - número equivalente aos habitantes dos Estados de São Paulo e Minas mais o Distrito Federal - e 12,7 milhões na extrema pobreza em 2022. Sem falar na concentração do problema entre as crianças, pretos e pardos e na região Nordeste. Quase metade das crianças de até 14 anos - 21,5 milhões - é classificada como pobre. O grupo de extremamente pobres totalizava 4,3 milhões, ou 10% do país. Além disso, 40% das pessoas pretas ou pardas eram pobres em 2022, o dobro da taxa da população branca (21%).

Os analistas do IBGE atribuíram a redução da pobreza aos programas sociais e à melhora do mercado de trabalho. Em 2022, diante das eleições presidenciais, o governo de Jair Bolsonaro ampliou o valor e o alcance da distribuição do Auxílio Brasil, que voltou a ser chamado de Bolsa Família na gestão do presidente Lula. As transferências têm maior influência na redução da extrema pobreza. A parcela dos programas sociais no rendimento domiciliar das pessoas em situação de extrema pobreza chegou a 67%, mas é de 20,5% entre os pobres em 2022.

Para alguns especialistas, as transferências sempre serão necessárias, notadamente para a extrema pobreza. O que se discute, porém, é a adequada gestão desses recursos. Com o objetivo de angariar votos, a gestão Bolsonaro eliminou contrapartidas exigidas, como cumprir o calendário vacinal e o currículo escolar, e estimulou a fragmentação familiar artificial, ao conceder o mesmo valor de benefício seja a família com um único membro ou a uma mãe solo com três filhos. A gestão de Lula está corrigindo as distorções, mas ainda há problemas.

O Tribunal de Contas da União (TCU) identificou inconsistências de renda em 40% das famílias registradas no Cadastro Único para o Bolsa Família, e de composição em 33% delas. O TCU estima que quase 25% das famílias registradas - nada menos de um quarto - sejam inelegíveis, resultando em desperdício de R$ 34 bilhões neste ano. Já a renda do trabalho corresponde a 63,1% dos ganhos dos domicílios considerados pobres e a 27,4% dos classificados em extrema pobreza. A taxa de desemprego caiu para 9,3% em 2022 segundo a Pnad Contínua do IBGE, em comparação com 13,2% em 2021. A melhora do emprego e da renda neste ano deve contribuir para novas reduções na pobreza. No trimestre terminado em outubro, o desemprego ficou em 7,6%, a menor taxa desde o trimestre móvel encerrado em fevereiro de 2015.

Daí a importância da recuperação da economia para o combate à pobreza. No ano passado, o PIB revisado cresceu 3%. Para este ano, é promissora a expectativa de uma expansão de magnitude semelhante. Mas o ritmo deve recuar em 2024.

Um outro fator importante nessa equação é a educação. Nessa frente as notícias não são boas. O novo teste do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), que a Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) acaba de divulgar, mostra que a educação no Brasil, assim como no resto do mundo, foi prejudicada pela pandemia, mas aqui está estagnada desde 2009.

O pior resultado dos estudantes brasileiros foi em matemática, com nota média de 379 e queda de 5 pontos em relação à avaliação anterior, de 2018, e 93 pontos abaixo da média dos países da OCDE, de 472 pontos. Em leitura, os brasileiros registraram média de 410, queda de 3 pontos em relação à prova anterior e 66 pontos abaixo da média da OCDE. Em ciências, o desempenho médio foi de 403, um ponto a menos do que em 2018, mas 82 pontos abaixo da média.

Entre os 81 países participantes, o Brasil aparece na 64ª posição em matemática, atrás de países como Peru e Colômbia; em 52º em leitura, atrás do México e Uruguai; e em 61º em ciências, pior que Argentina e Cazaquistão. O Brasil está entre os 20 piores em matemática e ciências e os 30 piores em leitura. Não por acaso, as regiões mais pobres como Norte e Nordeste mostram as piores notas.

Para reverter o quadro é necessário não só focalizar melhor e aprimorar os programas sociais, mas avançar na educação, cujas mazelas têm diagnósticos claros e baixa execução de políticas apropriadas.

 Delírios petistas

Folha de S. Paulo

Não convém que só Haddad defenda racionalidade ante teses tresloucadas da sigla

Na fantasia do PT, apenas interesses perversos e forças malignas o impedem de solucionar todas as carências do país —em renda, educação, saúde, saneamento, infraestrutura— por meio do aumento contínuo do gasto público.

Por caricatural que pareça, o delírio se repete, em formulações variadas, nas manifestações de seus quadros e nos inúmeros documentos divulgados ao longo dos mais de 40 anos de vida do partido. No mais recente, datado de sexta-feira (8), a legenda arremete contra "a ditadura do Banco Central ‘independente’ e do austericídio fiscal".

O tal austericídio, sabe-se, é a meta apresentada pelo próprio governo petista de equilibrar as receitas e despesas do Tesouro Nacional no próximo ano, eliminando o déficit. Esse propósito seria uma imposição de um BC atrelado ao mercado financeiro, de rentistas e, claro, seus porta-vozes na mídia.

Assim o explicitou a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que no dia seguinte, em evento partidário, apresentou publicamente sua divergência ao ministro Fernando Haddad, da Fazenda, com a defesa de um rombo de até 2% do PIB. Fala-se aqui de mais de R$ 200 bilhões.

Seria menos perigoso se desvarios do gênero não passassem de bravatas para inflamar militantes. Viu-se sob Dilma Rousseff, porém, que a fé cega na capacidade infinita do Estado pode gerar desastres reais. Agora, o PT não se constrange em enfraquecer Haddad, um quadro seu, e pôr em risco o governo.

Pouco importa à sigla que a meta de déficit zero seja objeto de descrédito unânime. A mera tentativa de reduzir o gigantesco desequilíbrio das contas, por meio de algum controle da despesa, já é tida como um arrocho cruel.

O setor público brasileiro gasta algo como 40% do PIB, sem considerar os encargos com juros. Trata-se de um dos maiores patamares do mundo. Incluídos os juros, o déficit próximo de 8% do PIB supera o de quase todas as principais economias. A dívida, de 75%, tem poucos paralelos entre emergentes.

Enxergar austeridade excessiva nesse cenário é alucinação que faz o PT crer que, com ainda mais gasto e déficit, fará a atividade econômica se expandir e gerar mais receita —tese que Haddad cuidou, diplomaticamente, de desmentir.

Justifica-se elevar a despesa quando o país está em recessão e é preciso estimular o consumo e o investimento. Já tomar esse expediente como moto-contínuo levaria, mais uma vez, a uma espiral de dívida, inflação, juros e baixo crescimento.

Não convém que o ministro da Fazenda assuma o papel de defensor solitário da racionalidade no partido e no governo. Luiz Inácio Lula da Silva, que se apraz em arbitrar os embates petistas, já cometeu a imprudência política de esgarçar as contas do Tesouro logo no primeiro ano de mandato.

PM problemática

Folha de S. Paulo

Projeto que regula polícias e aguarda sanção de Lula tem lacunas e gera dúvidas

projeto que cria a Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros foi enfim aprovado pelo Congresso, numa rara composição entre o governo petista e a bancada de parlamentares adeptos de uma abordagem linha-dura em segurança pública.

O texto, que aguarda a sanção presidencial, foi considerado prioritário para o Ministério da Justiça, chefiado por Flávio Dino, em ofício enviado ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

É consenso entre especialistas que a norma anterior, um decreto-lei da ditadura militar, ficou obsoleta no regime democrático. A reforma é necessária e uma reivindicação legítima dos policiais.

Um de seus méritos é criar um padrão nacional para a atuação das corporações. Contudo o projeto aprovado deixa lacunas e ainda suscita novas dúvidas.

Mecanismos de controle das PMs correm o risco de ser enfraquecidos, uma vez que as ouvidorias podem passar a ser subordinadas aos comandantes —atualmente essas instituições estão ligadas às secretarias de Segurança ou operam de forma independente.

Fica explícita na lei a proibição de que policiais e bombeiros se filiem a partidos ou sindicatos, conforme entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal. Os profissionais, segundo o texto, tampouco podem comparecer a atos políticos usando farda, a menos que no cumprimento da função.

Entretanto analistas consideram que se perdeu a oportunidade de estabelecer regras mais rígidas contra a politização no meio policial, uma preocupação que cresceu com a ascensão do bolsonarismo e a proliferação de candidaturas de membros da corporação.

Critica-se ainda a exigência de que oficiais da polícia, responsáveis pelos postos de comando, tenham bacharelado em direito —o que desconsidera a diversidade dos quadros da instituição e a contribuição de outras áreas do conhecimento para a segurança pública.

Temas fundamentais como saúde mental dos policiais, condições materiais de trabalho, responsabilização da cadeia de comando, câmeras policiais e controle externo e interno das polícias não chegam a ser abordados a contento.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) poderá aperfeiçoar o diploma com vetos parciais, mas parece claro que a legislação atualizada depois de décadas permanecerá problemática.

Destruição do Cerrado ameaça a economia e a vida

Correio Braziliense

Até outubro deste ano, bioma, reconhecido como o berço das águas, perdeu 683,2km² de cobertura vegetal, o dobro da área de Belo Horizonte e 203% mais do que no mesmo período de 2022. Na Amazônia, o desmatamento vem sendo reduzido

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 75 anos no último sábado. Não é um tema restrito ao Brasil, mas amplo para toda a humanidade e implica respeito aos cidadãos do planeta. Mas não só isso. É preciso respeito também ao patrimônio natural que garante a vida dos seres, inclusive dos humanos. Hoje, o país vive o dilema entre preservar o rico patrimônio natural nacional e elevar os ganhos financeiros do agronegócio, embora ambos não sejam incompatíveis. A dúvida não existiria se todos fossem conscientes de que, sem um meio ambiente saudável, não haverá meios de produzir alimentos e ofertar água com qualidade à população nem sobreviver. A hostilidade contra o patrimônio ambiental agride o primeiro artigo da declaração: "Todo ser humano tem direito à vida".

Em conversa com o Correio Braziliense, a ecóloga Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), foi contundente em sua advertência: "Preservar a Amazônia e degradar o Cerrado é uma estratégia suicida". Em novembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por meio do sistema Deter, constatou que, no mês anterior, o Cerrado perdeu 683,2km² de cobertura vegetal — o dobro da área de Belo Horizonte (332km²). Um aumento de 203% em comparação com o registrado em igual mês de 2022. No mesmo período, ocorreu uma queda de 52% na Amazônia, onde 435km² foram desmatados, configurando a menor taxa para outubro na série histórica do bioma, iniciada em 2015.

O desmatamento avança no Cerrado amparado pela legislação. Na revisão do Código Florestal (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012), congressistas tiveram força para impor suas pretensões — entre elas, a ampliação dos limites de desmatamento do Cerrado nas propriedades privadas. Na Amazônia, os produtores rurais — pequenos, médios e grandes — têm de preservar 80% da vegetação nativa. No Cerrado, apenas 20% da flora devem ser poupados.

Os legisladores desconsideraram a importância do Cerrado como essencial à oferta de água e, sobretudo, em relação às bacias hidrográficas — entre elas, as que são tributárias de cursos de água na Região Amazônica. Não à toa, o Cerrado é, sem qualquer exagero, o berço das águas. As suas nascentes alimentam nove das 12 principais bacias hidrográficas do país, como a transnacional bacia do Rio do Prata, a Platina, na tríplice fronteira — Brasil, Uruguai e Argentina.

Levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) identificou 100 milhões de hectares de terras ociosas no país. Cerca de 40% estão em poder de latifundiários, como reserva de valor — imóveis rurais improdutivos. Na prática, a abertura de novas frentes de produção agropecuária se mostra desnecessária. É mais do que factível produzir sem desmatar, sem agressões ambientais, assegurando alimentos e lucros aos empreendimentos rurais.

Os fenômenos climáticos extremos não são apenas alertas de que é preciso dar um basta às emissões de gases de efeito estufa, que levam ao aquecimento global. Advertem que é necessário entender a conservação do patrimônio natural como aliada da perenidade da vida no planeta. É garantir saúde plena à mãe Terra, como legado às futuras gerações.

Para evitar uma tragédia de proporções inimagináveis ou o agravamento dos inúmeros problemas socioeconômicos enfrentados pelo país, é fundamental ter consciência de que os humanos são integrantes do meio ambiente. É sentir pertencimento ao patrimônio natural. Portanto, é necessário interromper o desmatamento brutal da cobertura vegetal do Cerrado. O comprometimento da vida humana começa com a eliminação das matas, o assoreamento dos rios, a supressão das nascentes de água potável e a extinção dos animais. Visões e comportamentos inversos dessa lógica são a abertura da estrada em direção à finitude coletiva da vida no planeta, e não haverá porta de escape para o Brasil.

Sinceridade petista

O Estado de S. Paulo

Ao se queixar do ‘austericídio fiscal’ de Haddad e dizer que o partido não terá voto se governo economizar dinheiro, cúpula do PT mostra-se perfeitamente alinhada a pensamento de Lula

A cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT) não se emenda. As divergências expostas durante a Conferência Eleitoral da legenda demonstraram de forma cristalina a enrascada em que se encontra o ministro Fernando Haddad, sobretudo no debate dentro do governo sobre a meta de zerar o déficit primário em 2024, prevista no novo arcabouço fiscal. Pelo que se viu no fim de semana, se depender do PT o governo mandará às favas qualquer controle das contas públicas. Para o pensamento petista, há uma coisa muito mais importante do que o equilíbrio macroeconômico: votos.

Coube à presidente do partido, Gleisi Hoffmann, demarcar o tom e a intensidade da artilharia – que, a propósito, ignora o fato de que é o equilíbrio macroeconômico que dá sustentação a qualquer governo no longo prazo. Em debate com Haddad, Gleisi expôs o seu raciocínio primitivo em matéria econômica: “Se o privado não está bem, o Estado tem que entrar com tudo. O que tem de ser feito ano que vem: executar o Orçamento inteiro, não é um déficit que vai mudar (a situação do País)”, afirmou Gleisi. Ela reforçou a ideia – já antecipada pela repórter Vera Rosa neste Estadão – sobre o que a cúpula petista chama de “austericídio fiscal”. Daí concluiu que o governo não deveria se preocupar com o resultado fiscal.

O líder do PT na Câmara, José Guimarães, foi sincero: “Se tiver que fazer déficit, vamos fazer, ou a gente não ganha a eleição”. Ou seja, segundo Guimarães e os muitos petistas que pensam como ele, a meta de zerar o rombo das contas públicas pode fazer com que a sigla perca as eleições municipais.

Haddad parece estar cada vez mais sozinho e inspira os temores de que a meta do déficit zero não passa de um esforço isolado da equipe econômica, sem amparo no próprio governo. Primeiro, porque, conhecendo as engrenagens de funcionamento do PT e do governo, é difícil acreditar que os movimentos de Gleisi, Guimarães et caterva não tenham o aval do presidente Lula da Silva. Segundo, porque há uma avaliação majoritária no partido de Lula de que o governo terá de contingenciar recursos de emendas parlamentares e de investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para cumprir a meta fiscal no ano que vem, o que prejudicaria o envio de verba para aliados dos petistas nos municípios.

A possibilidade de contingenciamento é real porque assim funcionam boas políticas fiscais. Mas a cúpula petista – leia-se Lula – parece não ter entendido nem aprendido nada com a história, com seus mandatos e com os próprios sucessos e fracassos. Onde o PT enxerga arrocho ou coisa que o valha é, na verdade, a chave para o crescimento econômico. Desenvolvimento, como disseram alguns economistas em reação às declarações do fim de semana, não é fruto de gasto público mal feito, e sim de investimentos – e nada disso se consegue de maneira sustentável sem que a casa fiscal esteja arrumada. No debate com Gleisi, Haddad, com razão, lembrou-lhe que não é verdade que déficit faz a economia crescer nem que superávit a faça encolher.

Não é de hoje o esforço petista para desmoralizar sistemas de metas de superávit primário e gestões que deveriam se pautar pelo óbvio: o cumprimento da lei. Em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff, o então ministro Joaquim Levy tinha no PT um dos seus principais algozes no Congresso, até a ponto de eliminar qualquer resquício de credibilidade perdida no mandato anterior e que a equipe econômica tentava reconstruir. O resultado, sabemos: deterioração fiscal crescente, desequilíbrio macroeconômico e perda contínua de apoios até culminar com a crise política de 2016. A lição pareceu insuficiente, porque o PT fez o que costuma fazer: pôs o fracasso na conta de forças externas.

Haddad precisará muito mais do que qualquer competência argumentativa. Só um árbitro pode conter os delírios petistas e estimular a sensatez: Lula da Silva. Mas sobre ele pesarão não apenas os ecos da cúpula petista, como também as pressões das últimas pesquisas, que apontam viés de baixa em sua popularidade. Diante disso, Lula já concluiu que a solução é a gastança – e mandou seus sabujos no PT dizerem isso em voz alta.

Censura sempre à espreita

O Estado de S. Paulo

Suspensa na semana passada pelo STF, decisão da Justiça do Maranhão decretando censura contra o ‘Estadão’ explicita a sofrível compreensão da liberdade de imprensa de muitos juízes

É constrangedor que, em 2023, com 35 anos de vigência da Constituição de 1988, tenha gente que acione a Justiça para pedir a imposição de censura a meios de comunicação. Mas mais constrangedor ainda é constatar que existem juízes que concedem o tal pedido autoritário.

No dia 6 de dezembro, o juiz José Eulálio Figueiredo de Almeida, da 8.ª Vara Cível de São Luís (MA), determinou a exclusão de duas reportagens do Estadão relativas a retransmissoras de TV concedidas pelo ministro das Comunicações, Juscelino Filho, a uma emissora ligada ao grupo político dele no Estado do Maranhão. E exigiu que os três jornalistas autores das reportagens assinassem uma carta de retratação redigida pela autora da ação, a TV Difusora do Maranhão.

A decisão da Justiça maranhense era uma óbvia violência à liberdade de expressão e de imprensa. Buscava não apenas impedir o acesso da população a material jornalístico de evidente interesse público, mas impor uma versão dos fatos. Na tal “retratação” exigida pela decisão, o jornal e seus repórteres deveriam afirmar que “noticiaram informações falsas”.

Trata-se realmente de uma visão muito peculiar sobre o Estado Democrático de Direito. Um juiz do Maranhão se achou no direito de censurar notícias desagradáveis às lideranças locais – no caso, Juscelino Filho, ministro das Comunicações –, e ainda pretendeu assumir o papel de árbitro da verdade, determinando o que seria falso e o que seria verdadeiro e como a notícia deveria ser noticiada. Segundo o juiz, a “intervenção judicial” era necessária porque, “ainda quando seja verdadeira a notícia, esta deve ser divulgada sem exageros, sem embustes, sem tendenciosidade e sem afronta”.

Felizmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) agiu rapidamente. Na sexta-feira, dois dias depois, o ministro Cristiano Zanin suspendeu a censura imposta contra o Estadão. Na avaliação de Cristiano Zanin, a decisão da Justiça do Maranhão “utiliza-se de argumentos genéricos, sem justificar suficientemente o motivo da restrição à liberdade de imprensa”. Além disso, “não há informação nos autos de que a notícia seja falsa ou sabidamente maliciosa”, disse o ministro do STF.

Reconhecendo elementos de “manifesta restrição à liberdade de expressão no seu aspecto negativo”, em afronta à Constituição e à própria jurisprudência do STF, Cristiano Zanin afirmou que a determinação de retirada das matérias jornalísticas do site do Estadão configura “evidente obstrução ao trabalho investigativo inerente à imprensa livre, além de caracterizar embaraço ao repasse das informações à opinião pública”.

Diante de decisões como essa da Justiça do Maranhão, é preciso recordar o óbvio: não há censura no País, nenhum juiz tem o poder de censurar matéria jornalística. Além disso, esse tipo de decisão deve servir de alerta para o Supremo e para toda a sociedade. A compreensão sobre liberdade de imprensa na Justiça brasileira é ainda muito frágil e incipiente. O patamar de respeito aos direitos fundamentais é rigorosamente muito baixo.

Ou seja, ao proferir orientações jurisprudenciais – como fez recentemente a respeito da responsabilidade dos meios de comunicação por conteúdo de uma entrevista publicada –, o STF deve ter presente que são esses magistrados que analisam os casos que chegam à Justiça. É com esse Judiciário que a imprensa tem de lidar diariamente na defesa das liberdades de expressão e de imprensa.

O Estadão simplesmente noticiou (i) que o ministro Juscelino Filho concedeu 31 retransmissoras de televisão para a TV Difusora, ligada ao grupo político dele, e (ii) que um pedido da emissora para expandir a operação de retransmissão de TV foi despachado em meia hora por Antonio Malva Neto, diretor do Departamento de Radiodifusão Privada e antigo sócio em um escritório de advocacia de um dos acionistas da emissora. “É evidente que existe interesse jornalístico nos relatos em questão”, afirmou Cristiano Zanin. No entanto, o juiz do Maranhão achou que sua função era censurar o jornal. Há ainda muito, muitíssimo, a avançar.

Sabatina exótica

O Estado de S. Paulo

A sabatina simultânea de Flávio Dino e Paulo Gonet pode se prestar a tudo, menos a atender ao interesse público

O presidente da CCJ do Senado, Davi Alcolumbre, submeteu o interesse público a seu vezo novidadeiro. O senador cogita realizar as sabatinas dos indicados pelo presidente Lula da Silva ao Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, e à Procuradoria-Geral da República (PGR), Paulo Gonet, não apenas no mesmo dia, como durante a mesma sessão, marcada para amanhã.

Se confirmada essa esquisitice, Dino e Gonet serão sabatinados na CCJ sentados lado a lado. Brincando com coisa séria, Alcolumbre disse a colegas que o questionaram sobre a inovação no formato da sabatina que é dado a “fazer coisas novas”. Decerto há inovações que vêm para o bem. Essa, no entanto, é absolutamente deletéria.

É fundamental contextualizar o momento por que passam o STF e a PGR para que se tenha a exata dimensão do erro que seria uma sabatina mal feita dos indicados para ambas as instituições. Para parte expressiva dos cidadãos, a imagem do STF como Corte Constitucional está maculada pela atuação política de alguns de seus ministros. A sociedade tem o direito de conhecer em detalhes a visão de Dino sobre isso. Que Lula indicou seu ministro da Justiça ao STF para politizar ainda mais a Corte, não resta dúvida. O indicado prestar-se-á a esse jogo? Qual a compreensão de Dino sobre o papel do STF?

A PGR, por sua vez, precisa voltar ao trilho da normalidade institucional. Sob Rodrigo Janot, rasgou a Constituição em nome de uma suposta purgação nacional. Deu no que deu. Já sob Augusto Aras, ajoelhou-se no altar das conveniências de Jair Bolsonaro e virou as costas para o País. Que caminho o Ministério Público Federal haverá de trilhar sob a liderança de Paulo Gonet?

Essas, entre tantas outras, são perguntas cruciais que só por meio de sabatinas muito bem realizadas os indicados poderão responder.

Do ponto de vista regimental, Alcolumbre pode ter a prerrogativa de determinar como ocorrerão as sabatinas que a CCJ deve realizar. O modelo de predileção do senador, porém, não só colide com o melhor interesse público, como ainda afronta o espírito da sabatina imaginado pelos constituintes. Convém recordá-lo.

A sabatina não é mera formalidade, não é um carimbo burocrático do Senado sobre as indicações do chefe do Poder Executivo federal. Trata-se de uma obrigação constitucional da Câmara Alta que não se presta a outra coisa senão a dar à sociedade conhecer a capacidade, as ideias e o grau de compromisso dos sabatinados com as leis, com a Constituição e com a natureza dos elevados cargos que ocuparão na República. Ainda que não demandem voto popular, tais cargos não estão livres de um rigoroso escrutínio público.

Aferir se Flávio Dino e Paulo Gonet estão à altura dos cargos para os quais foram indicados pelo presidente da República já seria trabalho de fôlego caso as sabatinas de ambos fossem realizadas individualmente, durante parte de um dia, como sói acontecer. A excrescência de uma “sabatina simultânea” pode ser tudo, menos uma sabatina rigorosa, republicana. É algo motivado sabe-se lá por quais interesses. Interesse público, seguramente, não é.

 

 

 

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