Correio Braziliense
Além da descrição dos próprios debates, a
riqueza do livro Debate na veia está nos bastidores da realização pioneira do
enfrentamento direto e livre entre candidatos diante dos telespectadores
Há diversas razões para recomendar um livro:
texto agradável, história instigante, lições instrutivas, provocação de novas
ideias. Debate na veia, de Fernando Mitre, merece ser recomendado por
todas elas.
O admirado e respeitado jornalista nos fascina com agradáveis textos sobre um assunto atraente; aos de meia-idade, nos faz recordar momentos decisivos de nossa redemocratização; para o leitor de qualquer idade ensina história recente do Brasil; aos jovens que desejam ser jornalistas passa instrutivas lições fundamentais sobre a profissão. Sobretudo, nos provoca pelo menos duas ideias: o debate entre candidatos é uma injeção fortificante na veia da democracia e, apesar dessa vitamina, a democracia continua frágil.
Além da descrição dos próprios debates, a
riqueza do livro está nos bastidores da realização pioneira do enfrentamento
direto e livre entre candidatos diante dos telespectadores. A ditadura ainda
não estava de fato extinta (talvez ainda não esteja) e o Mitre com a Band já se
propunham a abrir o debate sem filtros entre todos os líderes do país. Os
debates foram determinantes para dar ao eleitor o argumento de escolha e também
para mostrar a estética do processo democrático, luta, balé, esgrima, boxe entre
os candidatos. Um dos capítulos explicita esse aspecto com o título Virou
circo? O público gosta.
O livro mostra também que a vitória não vai
necessariamente para os que dispõem de melhores propostas para o país no
futuro, porque o eleitor busca quem realiza seu interesse, não do país, para o
momento, não para o futuro. A democracia é o sistema que privilegia o indivíduo
e considera que a soma dos desejos da maioria deles para o imediato representa
a vontade do conjunto para o futuro. Essa é a fortaleza da democracia — dar aos
indivíduos o poder de escolher o líder de seu povo — e sua fragilidade — assumir
que o interesse de longo prazo do povo se identifica com a soma dos desejos
atuais da maioria dos indivíduos —, como se a eleição fosse um teste de
múltipla escolha. Os eleitores são prisioneiros de escolha entre nomes
previamente escolhidos pelos partidos.
O eleitor não desenha o líder que deseja e
escolhe mais por deslumbramento entre os candidatos oferecidos do que pelo
desempenho de cada um, às vezes vota em um por não gostar do outro, por razões
que nem ele percebe; outras vezes, um perdedor no debate vence na urna,
beneficiado com a solidariedade do eleitor. É fascinante conhecer os truques,
caprichos e melindres de cada candidato e seus assessores, que o Mitre desvenda
e desnuda, além de mostrar que a beleza da democracia está no poder do
indivíduo para escolher os dirigentes de seu país, mas os votos dependem de
variáveis que pouco têm a ver com a capacidade do escolhido para liderar o povo
e gerir seus recursos nacionais de maneira eficiente, justa e sustentável em
benefício da nação.
Mitre mostra ao leitor que o debate na veia é
absolutamente necessário, mas não suficiente para eliminar a fragilidade da
democracia da múltipla escolha que se baseia em eleições em função de erros,
descuidos e frases dos candidatos. Em alguns casos, da empatia com o carisma,
ou com o despojamento da camisa sem gravata.
Soma-se a essa fragilidade intrínseca ao
sistema democrático desde sua origem, a realidade do mundo contemporâneo com
problemas planetários e democracias nacionais. No mundo atual, de mudanças
climáticas, migração em massa, economias integradas, a fragilidade da
democracia decorre também de sua limitação ao curto horizonte de tempo e aos
limites das fronteiras nacionais. O eleitor nos países mais ricos e
democráticos busca proteger-se nacionalmente; nos países pobres, eles querem
resolver seus problemas locais e imediatos.
Desde a Grécia antiga, só votavam os
eleitores da cidade-estado e, apesar de as decisões dos governantes atuais
terem efeitos mundiais, os estrangeiros não votam: a Terra não cabe na Ágora.
Os debates na “veia da democracia” servem ao
momento e ao local, mas, para construir o futuro, ela terá de se modernizar nos
temas, no espaço geopolítico e no tempo histórico. Isso exige educação, tema
que esteve praticamente ausente em todos debates nestes mais de 40 anos, como o
livro de Mitre nos faz perceber, deixando no leitor vontade de mais debates na
veia do processo eleitoral e mais educação na veia da própria democracia.
*Cristovam Buarque é professor emérito da
Universidade de Brasília (UnB)
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