Valor Econômico
O grande desequilíbrio das contas públicas está no lado do gasto, mas enfrentar o problema com determinação não está na agenda do governo
Com menos de um ano de vigência, o novo arcabouço fiscal já tem a credibilidade arranhada. O governo afrouxou em abril a meta de resultado primário (exclui gastos com juros) de 2025 e dos anos seguintes, e o ajuste das contas públicas depende muito de um aumento forte e incerto de receitas, visto com ceticismo por muitos analistas. O grande desequilíbrio fiscal do país está no lado do gasto, mas enfrentar o problema com determinação não está na agenda do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda que a ministra do Planejamento, Simone Tebet, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenham falado nas últimas semanas sobre a necessidade de se discutir a vinculação de despesas.
A maior parte dos gastos obrigatórios cresce
a um ritmo insustentável, por estarem vinculados ao aumento da receita ou ao
reajuste do salário mínimo. Nesse cenário, essas despesas tomam espaço cada vez
maior do orçamento, comprimindo os já esquálidos gastos discricionários
(aqueles que o governo controla), como o investimento.
A vinculação de despesas é o principal motivo
para o desequilíbrio crônico das contas públicas, diz o economista Marcos
Mendes, pesquisador associado do Insper. É o caso dos gastos com saúde e
educação, atrelados à variação da receita, ou o piso previdenciário e de
benefícios assistenciais, reajustados pelo salário mínimo, que voltou a ser
corrigido no atual governo pela inflação do ano anterior mais o crescimento do
PIB de dois anos antes.
“Quando você vincula uma despesa a uma
receita, essa despesa tende a crescer acima da inflação, pois a tendência de
médio prazo da receita é crescer no mesmo ritmo da atividade econômica. Logo,
essa despesa vinculada vai crescer em termos reais [descontada a inflação] ao
longo do tempo”, afirma Mendes, chefe da assessoria especial do ministro da
Fazenda de 2016 a 2018. “O mesmo ocorre quando você indexa uma despesa a uma
variável que tem crescimento real, como o salário mínimo.”
Em maio de 2023, o mínimo já foi corrigido
acima da inflação. Isso tem um efeito imediato sobre os gastos com
aposentadorias e pensões e o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltados
para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência). Nas contas de Mendes, a
vinculação ao mínimo, em vigor há pouco mais de 18 meses, fará os gastos com a
Previdência ficarem R$ 16 bilhões mais elevados neste ano do que se fossem
reajustados pela inflação, enquanto as despesas com o BPC ficam R$ 5 bilhões
maiores.
Em texto recomendado por Haddad, o economista
Bráulio Borges, da LCA Consultores e pesquisador do FGV Ibre, diz que “o
salário mínimo é uma variável que deve sim ser reajustada ao longo do tempo em
termos reais, refletindo ganhos de produtividade da mão de obra, mas é uma
variável que deve regular o mercado de trabalho, ou seja, a vida de quem está
participando ativamente da produção econômica”. Já as aposentadorias e pensões
deveriam ser reajustadas apenas pela inflação, mantendo o poder de compra ao longo
do tempo, escreve Borges.
Com o novo arcabouço fiscal, voltaram a valer
as vinculações à receita dos pisos de gastos da União com saúde e educação. No
período de vigência do teto de gastos, eles eram corrigidos pela inflação
passada. No caso da saúde, as despesas mínimas devem equivaler a pelo menos 15%
da receita corrente líquida (RCL). Nos cálculos de Mendes, os gastos com a área
neste ano serão quase R$ 60 bilhões maiores do que se houvesse a correção da
despesa mínima de 2022 (o último ano antes da alteração da regra) pela inflação.
Já o gasto com educação precisa corresponder
a pelo menos 18% da receita líquida de impostos. No entanto, as despesas para
essa área já superam o mínimo legal. Com isso, Mendes considera não ser
possível dizer que haja um efeito direto da alta do dispêndio mínimo com
educação no gasto total.
Reportagem de Jéssica Sant'Ana, Lu Aiko Otta
e Guilherme Pimenta publicada pelo Valor na semana passada mostra que
os gastos mínimos em educação e saúde até 2028 deverá crescer 106% e 56% em
relação ao valor do ano passado, segundo o Projeto de Lei de Diretrizes
Orçamentárias (PLDO) de 2025. Pelas projeções do Ministério do Planejamento,
vão sobrar R$ 11,753 bilhões em 2028 para as despesas discricionárias do
Executivo, após a dedução dos dispêndios mínimos com educação e saúde. Mudar o
critério de variação desses gastos é algo que a equipe econômica cogita, mas a
apresentação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com a alteração não
deve ocorrer neste ano. A mudança não seria aprovada com tranquilidade, mas é
menos difícil do que desvincular o piso dos benefícios previdenciários e
assistenciais do salário mínimo.
Mendes afirma que “acabar com as vinculações
não significa autorização para corte imediato de gastos nas áreas protegidas”.
Segundo ele, isso não ocorreria porque a maioria dos gastos é obrigatória, como
o pagamento de aposentadorias, benefícios sociais e salários. “O fim das
vinculações ajudaria a fazer com que o ritmo de crescimento da despesa
diminuísse ao longo tempo. Com ela crescendo em ritmo menor que o PIB e a
receita, fica mais fácil equilibrar as contas no médio prazo.”
As vinculações protegem basicamente gastos
correntes, nota Mendes. “Nas despesas protegidas, até há algum investimento
dentro de saúde e educação (construção de escolas e hospitais), mas a maior
parte é gasto corrente, fortemente concentrada em benefícios previdenciários e
assistenciais e gasto com pessoal da saúde e educação.” Além disso, há outras
não vinculadas, mas também rígidas, como os dispêndios com pessoal fora das
áreas de saúde e educação e os precatórios. “A única despesa com flexibilidade
para ser cortada acaba sendo o investimento.”
Alguém poderá dizer que os gastos com juros
são muito altos. Sem dúvida - as despesas financeiras do setor público
consolidado totalizaram R$ 745,7 bilhões nos 12 meses até março, ou 6,76% do
PIB. Mas, para reduzi-las sem voluntarismo, é fundamental reforçar a percepção
de que as contas públicas são sustentáveis, o que passa pelo combate ao
crescimento dos gastos. Um passo importante seria enfrentar as vinculações de
despesas. Isso abriria espaço para o recuo mais forte da Selic e a queda dos
juros de longo prazo, hoje acima de 6%, descontada a inflação, como indicam os
títulos do Tesouro corrigidos pelo IPCA que vencem em 2045 e 2050. Com juros
estruturalmente mais baixos, a dinâmica da dívida seria mais favorável,
exigindo um esforço fiscal menor para estabilizar o nível de endividamento em
relação ao PIB.
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