Folha de S. Paulo
A figura de
intelectual público, simbolizada por pessoas com amplo repertório cultural,
destreza na escrita e na interação com o público e disposição para se engajar
em discussões que mobilizam a sociedade, ganhou popularidade no século 20,
tendo em Jean-Paul Sartre uma de suas mais célebres expressões. Nas últimas
décadas, contudo, mudanças sociais, sobretudo na produção e difusão de
conhecimento nas universidades, acarretaram o declínio desse modelo e apontam
novas modalidades de intervenção intelectual
Ao escrever sobre
a representação do intelectual, Edward Said destacou
que sua imagem foi moldada pelo caso do
capitão Alfred Dreyfus, durante o qual o
romancista Émile Zola mobilizou diversos homens de letras —sim, quase
todos, homens— em uma causa política e moral que colocava em questão os
fundamentos e a dinâmica da República francesa.
Em vista disso, o
intelectual, na visão de Said, teria como missão confrontar ortodoxias, atuar
de forma crítica na sociedade e agir com base em princípios universais. Essa
categoria social surgiu no final do século 19, em um contexto de transformações
sociais, como o processo de urbanização na Europa, o desenvolvimento de
universidades e
a industrialização da imprensa e da atividade editorial.
Esses eventos contribuíram para a formação de um espaço público aberto a debates políticos e culturais e, igualmente, propiciaram a autonomia da esfera da produção intelectual. Assim, os escritores e os artistas puderam se libertar da chancela de diversas modalidades de mecenato e passaram a viver de seus trabalhos e a se inserir na arena pública, ao lado de professores universitários, cientistas e profissionais liberais.
O
nascente modelo de intelectual público passou a ser simbolizado por
figuras que conquistaram visibilidade na arena cultural e política, combinando
habilidades como o conhecimento humanista, a capacidade de escrever bem, de
falar em público e de se engajar em causas sociais, éticas e políticas.
São personagens
que falam "a verdade diante do poder", na expressão de Said —e que tiveram na
figura de Jean-Paul Sartre uma de suas mais célebres expressões. Este
modelo dominou o imaginário social e foi considerado, em larga medida e em
muitos lugares, a forma legítima de atuação dos intelectuais na sociedade.
Durante o século
20, como detentores de um capital cultural adquirido nas instituições escolares
e/ou no meio familiar, os intelectuais conquistaram visibilidade participando
de eventos significativos nas arenas cultural e política de diversas sociedades
pelo mundo.
Para tanto,
combinaram suas capacidades de produzir ideias com ações que permitiram que
elas circulassem para além dos meios profissionais ou literários, afetando a
compreensão e a motivação de audiências amplas. Isso tornou os intelectuais
personagens públicos associados a representações coletivas sobre crises,
questões sociais e alternativas de mudanças.
Alguns deles
viraram figuras icônicas a partir de uma combinação de performance na arena
pública e de elaboração de narrativas persuasivas a respeito da vida social,
contando com uma infraestrutura de comunicações composta por editoras,
revistas, jornais, organizações políticas ou de mídia. No entanto, seria
enganoso imaginar que o espaço intelectual se restringe aos intelectuais que se
tornaram célebres.
Transformações
sociais em escala global reverberaram na reconfiguração nas modalidades de
participação dos intelectuais nos dias correntes e impactaram suas articulações
com a esfera pública, com as instituições de produção e transmissão de
conhecimento, em especial com a universidade e com a própria vida cultural e
política.
Nesta direção, ao
longo do tempo, ocorreu uma crescente diversificação do espaço intelectual.
Além de escritores, artistas, cientistas, acadêmicos, passou a contar com a
presença de administradores públicos, especialistas em
meios de comunicação, jornalistas, blogueiros, entre outras categorias.
Diante deste
cenário, no qual estes atores travam uma acirrada luta concorrencial em busca
do significado legítimo da figura do intelectual, qualquer definição social a
priori sobre este grupo corre o risco de efetuar um "coup de
force", incluindo ou excluindo de forma arbitrária os atores
deste espaço.
Isso posto, a
esfera intelectual ficou mais heterogênea, menos centralizada em personalidades
consagradas e mais matizada no que diz respeito aos modos de intervenção ou
engajamento destes atores, o que significa também uma intensificação da disputa
em torno dos atributos de legitimidade para lidar com questões públicas, assim
como em suas relações com as instituições de produção de conhecimento e as
organizações políticas ou da sociedade civil.
Os trabalhos
de Richard Posner, "Public Intellectuals: A Study of
Decline", e de Russell
Jacoby, "The Last Intellectuals: American Culture in the
Age of Academe", ressaltaram que a expansão das universidades
no pós-guerra passou a absorver uma parte expressiva dos intelectuais em seu
interior. Para eles, as universidades contemporâneas impulsionaram a
diversificação e a especialização do conhecimento, ao mesmo tempo em que
profissionalizaram a carreira acadêmica.
Assim, os
intelectuais que gradativamente tornaram-se acadêmicos organizaram suas vidas
em função dos critérios de suas carreiras e encontram-se submetidos de forma
crescente a formas de avaliação institucional.
Ao mesmo tempo,
passaram a divulgar seus trabalhos em periódicos especializados, utilizando uma
linguagem acessível basicamente aos membros de uma determinada área ou sub-área
de conhecimento, tendo como audiência prioritária seus colegas de profissão. Com
isso, perderam a comunicação com uma audiência mais ampla.
Atualmente, o
ambiente cultural se tornou menos favorável ao tipo de intelectual que marcou o
século passado. Patrick Baert, em seu trabalho sobre a figura de Sartre, "The Existentialist Moment: The Rise of Sartre as Public
Intellectual", mostrou que as condições de reprodução da
figura do intelectual público "universal" ou, como ele prefere, do
"intelectual com autoridade" para tratar de temas diversos, para além
de sua especialidade profissional, ficaram cada vez mais problemáticas.
Para ele, essa
modalidade de intelectual surgiu em sociedades nas quais o capital cultural
encontra-se concentrado numa pequena elite e, ao mesmo tempo, em que o meio
acadêmico possui uma estrutura amorfa, indicando uma limitada especialização do
conhecimento.
A
institucionalização das ciências sociais e o surgimento do estruturalismo
na França, a partir de 1950, abalaram a posição destacada que ocupava a
filosofia, disciplina que constituía em larga medida o celeiro dos intelectuais
públicos. Desde então, esses processos de institucionalização e
profissionalização das ciências sociais, que ocorrem em várias partes do mundo,
têm criado obstáculos para a atuação do intelectual público
"universalista", que trata de questões sociais, políticas e culturais
desprovido do treino adequado à respectiva área do conhecimento.
No mesmo sentido,
a expansão mundial do ensino superior, que vem se processando desde os anos
1970, incrementou o volume da produção, circulação e difusão de conhecimento
disponível para a esfera pública, contribuindo também para a disseminação de um
sentimento de ceticismo com relação à plausibilidade das formulações realizadas
por este tipo de intelectual.
Essas
considerações não significam que os intelectuais públicos desapareceram. Ao
contrário, trata-se de reconhecer o surgimento de novas formas de intervenção
na vida social, transformando o registro de narrativas de declínio ou
decadência numa narrativa de mudança na atuação intelectual.
Se determinadas
transformações sociais e acadêmicas tornaram mais complexo o surgimento do
intelectual público universalista, precisamos indagar o que surgiu em seu
lugar. Na esteira da
segmentação do conhecimento produzido nas universidades, cujo primado tem
norteado a organização dos departamentos, dos laboratórios de pesquisas e
direcionado a contratação do corpo docente, crescem as oportunidades de atuação
de intelectuais públicos especializados, que utilizam seu
conhecimento profissional, proveniente de suas investigações nas ciências
sociais ou naturais, para se envolver em debates precisos e relevantes.
A especialização
não significa um abandono da crítica ou da preocupação com valores que procuram
defender no espaço público. Diferentemente de experts que procuram apoiar suas
intervenções na suposta neutralidade de seus conhecimentos, como indício de cientificidade,
os intelectuais públicos especializados desenvolvem a crítica sem se
identificar com a figura do intelectual universal.
Na década de
1970, quando Michel
Foucault formulou sua concepção de intelectual específico, em oposição
à figura do intelectual universal, tinha em mente essa forma de engajamento, de
tal modo que sua pesquisa sobre a história da punição, exposta em "Vigiar
e Punir", estava vinculada à sua luta contra o sistema prisional.
Em sua visão, a
função do intelectual não é dizer aos outros o que fazer, tampouco modelar a
vontade política dos atores, mas sim repensar, por meio de sua competência
profissional, as categorias de análises do mundo social, interrogar as
evidências e os postulados rotineiros.
Para ele, a
função do intelectual consiste em diagnosticar o presente, longe de raciocinar
em termos de totalidade para formular promessas de um tempo vindouro. Busca
lutar, a partir de questões circunscritas, contra as diversas formas de poder
em situações nas quais ele é mais invisível e insidioso.
Alguns dias após
a morte de Foucault, em junho de 1984, Pierre
Bourdieu publicou no jornal Le Monde um artigo em sua homenagem. Nele
ressaltou que, ao elaborar a noção de intelectual específico, Foucault aliou de
forma recorrente a realização de seus trabalhos pontuais com engajamentos
políticos, mas abdicou, de forma deliberada, do papel de portador da verdade e
da justiça.
Bourdieu, diante
do avanço da "restauração conservadora neoliberal", expressão cunhada
por ele mesmo, percebeu a necessidade de criar a figura do intelectual coletivo.
Nesse ponto de
vista, as intervenções individuais dos intelectuais deixaram de ser suficientes
diante da forte presença do neoliberalismo, daí a premência de criar um
trabalho de equipe, apoiado nos conhecimentos das ciências sociais, em defesa
dos dominados e contra a destruição de uma civilização, conforme ele manifestou
em intervenção pública realizada na estação ferroviária de Lyon, durante as
greves de 1995. Em sua perspectiva, a ação do intelectual coletivo envolve o
difícil equilíbrio entre as atividades de pesquisador e a participação em
intervenções públicas sobre temas polêmicos de interesse geral.
Não seria
improcedente afirmar que a questão do sucesso dos intelectuais ocupa posição
destacada no imaginário social e na opinião pública, em função, principalmente,
da visibilidade e celebridade adquiridas pela alta exposição e projeção na
mídia.
No entanto, essa
obsessão pelo êxito de intelectuais que se destacam na arena pública tende a
ofuscar a participação importante de milhares de outros que atuam em espaços
locais da vida social. Por não receberem os holofotes da mídia, tornam-se menos
visíveis em escala nacional ou planetária.
Esses
intelectuais anônimos estão presentes em diversos movimentos, envolvem-se com
as comunidades locais e influenciam aspectos sociais, culturais e políticos de
suas sociedades. Cada um desses ambientes envolve a interação com um público
específico, diversificado e, muitas vezes, denso para a reflexividade social em
torno de problemas e formas de ação.
Nessas situações,
a relação do intelectual e do saber especializado com outros saberes, tais
como aqueles que se desenvolvem em movimentos sociais, organizações e em grupos
de profissionais, beneficia-se da dissolução da hierarquia e da autoridade em
favor de práticas que levam ao aprendizado mútuo e a um sentimento de
participação. São aspectos valorizados na concepção de uma "sociologia
pública", tal como defendida por Michael
Burawoy, que tem ganhado difusão e variações locais na prática disciplinar.
Os intelectuais
também estão inseridos em comunidades epistêmicas, ou seja, em redes formais
e/ou informais, localizadas em diversas sociedades nacionais, das quais fazem
parte profissionais de diferentes áreas do conhecimento, que operam em
dimensões locais e nacionais. Dado que tendem a compartilhar princípios e
crenças comuns a respeito de determinadas questões sociais, políticas e
culturais, encontram-se inclinados a identificar e intervir em assuntos que
consideram de relevância geral.
Com o processo de
globalização da esfera cultural e da vida acadêmica, propiciando o intercâmbio
de ideias e de informações entre os países, essas comunidades epistêmicas atuam
também em plano global, em diversidade de temas, tais como direitos humanos, imigração
internacional, aquecimento global, entre outros. Ainda que pouco visíveis
individualmente, esses intelectuais contribuem para projetar uma série de
questões relevantes para o debate público.
Essas
transformações na modalidade de intervenção na sociedade incidem também nas
relações com a audiência pública mais ampla, em situações que lidam com causas
e questões semelhantes àquelas que marcaram a história dos intelectuais.
Como exemplo,
podemos citar os dilemas postos pelas múltiplas dimensões das crises
contemporâneas: das emergências climáticas às guerras na Ucrânia e na
Palestina, da pandemia à crise das democracias. Em todas elas, o conhecimento
especializado constitui um elemento fundamental, porém necessita ser
suplementado por uma articulação mais geral de perspectivas éticas, políticas e
culturais, que excedem os procedimentos estritamente controlados da pesquisa
científica e do trabalho acadêmico mais restrito.
A mobilização do
capital cultural e do reconhecimento adquiridos no meio científico são
valorizados e podem ser úteis para o acesso à esfera pública, mas não fornecem,
por si mesmos, condições de autoridade e para uma intervenção eficaz.
Uma compreensão
mais democrática dos intelectuais aponta que seu engajamento no debate público
se dá, necessariamente, na condição de um participante que não detém uma
posição de enunciação privilegiada, mas está sujeito ao confronto com outros
pontos de vista. Apenas assim podem favorecer o autoentendimento das sociedades
e de seus problemas.
Assim como
determinadas condições sociais propiciaram o surgimento dos intelectuais como
uma categoria social no final do século 19, atualmente um conjunto de
transformações ocasionou a emergência de novas modalidades de suas presenças na
vida social.
São formas mais
descentralizadas de intervenções e de modos de participação, possivelmente
menos visíveis, quando comparadas com décadas passadas, e que são realizadas,
crescentemente, de forma coletiva, em diferentes esferas da sociedade.
Longe de serem
insignificantes, esses novos formatos de atuação expressam uma renúncia a uma
posição do intelectual como legislador, sem, no entanto, abrir mão de uma
postura crítica diante das conjunturas.
Ao mesmo tempo,
torna-se oportuno assinalar a persistência de um ethos anti-intelectualista
conduzido por parte de grupos
políticos de extrema direita, que procuram desacreditar socialmente o
conhecimento científico, atacar às produções artística e literária e depreciar
a figura de seus autores. Representam, enfim, a contraparte cultural de uma
aversão à democracia política.
Essa disposição
anti-intelectualista possui uma longa tradição que perpassa a investida de
Maurice Barrés, que acusava os apoiadores
de Alfred Dreyfus de serem maus franceses, inimigos do instinto vital
da nação.
Em tempos
recentes, essa perspectiva evidenciou-se, por exemplo, em livros como "Os
Intelectuais", de Paul Johnson, que os caracterizam como seres ilógicos,
arrogantes, que deveriam ser objeto de constante suspeita e mantidos longe do
poder, uma vez que procurariam impor de forma obstinada suas ideias abstratas a
homens e mulheres.
No Brasil, essa
visão intolerante sobre a vida acadêmica e a produção cultural esteve presente
em vários momentos históricos, como durante
a ditadura militar instaurada em 1964 e o governo
passado que manifestou profunda aversão ao trabalho intelectual.
Diante desse
cenário de intimidação, é preciso proteger a liberdade de produção de
conhecimento nas esferas artística, literária e científica, assim como seus
modos de participação no espaço público.
A autonomia da
produção cultural pressupõe a existência de uma sociedade plural, na qual as
intervenções dos intelectuais, ao estabelecerem relações entre problemas
específicos e questões de interesse público, possuem fundamental relevância
social e contribuem igualmente para a preservação de uma sociedade democrática.
*Carlos
Benedito Martins, professor titular do Departamento de
Sociologia da UnB (Universidade de Brasília)
*Felipe Maia,
professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de
Juiz de Fora
Um comentário:
O texto é bem interessante, mas lacunar. Não há sequer uma menção a Antonio Gramsci e suas reflexões sobre os intelectuais na construção da esfera política, por assim dizer, onde aparece a figura do intelectual orgânico. Se poderia fazer uma crítica a essa figura, mas nem a isso os autores se deram o trabalho. Uma outra observação lateral é a de que o texto registra o anti-intelectualismo como apenas uma manifestação recente da "extrema direita". Não seria fora de propósito observar que na trajetória do Partido do Trabalhadores, por exemplo, e nas manifestações do núcleo duro da sua principal liderança (nela inclusive) persistiu uma forte marca anti-intelectual, abrindo espaço somente para os intelectuais instrumentais, úteis, mas despresíveia.
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