segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Carlos Benedito Martins, Felipe Maia* - Intelectuais ainda têm influência nos debates públicos?

Folha de S. Paulo

A figura de intelectual público, simbolizada por pessoas com amplo repertório cultural, destreza na escrita e na interação com o público e disposição para se engajar em discussões que mobilizam a sociedade, ganhou popularidade no século 20, tendo em Jean-Paul Sartre uma de suas mais célebres expressões. Nas últimas décadas, contudo, mudanças sociais, sobretudo na produção e difusão de conhecimento nas universidades, acarretaram o declínio desse modelo e apontam novas modalidades de intervenção intelectual

Ao escrever sobre a representação do intelectual, Edward Said destacou que sua imagem foi moldada pelo caso do capitão Alfred Dreyfus, durante o qual o romancista Émile Zola mobilizou diversos homens de letras —sim, quase todos, homens— em uma causa política e moral que colocava em questão os fundamentos e a dinâmica da República francesa.

Em vista disso, o intelectual, na visão de Said, teria como missão confrontar ortodoxias, atuar de forma crítica na sociedade e agir com base em princípios universais. Essa categoria social surgiu no final do século 19, em um contexto de transformações sociais, como o processo de urbanização na Europa, o desenvolvimento de universidades e a industrialização da imprensa e da atividade editorial.

Esses eventos contribuíram para a formação de um espaço público aberto a debates políticos e culturais e, igualmente, propiciaram a autonomia da esfera da produção intelectual. Assim, os escritores e os artistas puderam se libertar da chancela de diversas modalidades de mecenato e passaram a viver de seus trabalhos e a se inserir na arena pública, ao lado de professores universitários, cientistas e profissionais liberais.

O nascente modelo de intelectual público passou a ser simbolizado por figuras que conquistaram visibilidade na arena cultural e política, combinando habilidades como o conhecimento humanista, a capacidade de escrever bem, de falar em público e de se engajar em causas sociais, éticas e políticas.

São personagens que falam "a verdade diante do poder", na expressão de Said —e que tiveram na figura de Jean-Paul Sartre uma de suas mais célebres expressões. Este modelo dominou o imaginário social e foi considerado, em larga medida e em muitos lugares, a forma legítima de atuação dos intelectuais na sociedade.

Durante o século 20, como detentores de um capital cultural adquirido nas instituições escolares e/ou no meio familiar, os intelectuais conquistaram visibilidade participando de eventos significativos nas arenas cultural e política de diversas sociedades pelo mundo.

Para tanto, combinaram suas capacidades de produzir ideias com ações que permitiram que elas circulassem para além dos meios profissionais ou literários, afetando a compreensão e a motivação de audiências amplas. Isso tornou os intelectuais personagens públicos associados a representações coletivas sobre crises, questões sociais e alternativas de mudanças.

Alguns deles viraram figuras icônicas a partir de uma combinação de performance na arena pública e de elaboração de narrativas persuasivas a respeito da vida social, contando com uma infraestrutura de comunicações composta por editoras, revistas, jornais, organizações políticas ou de mídia. No entanto, seria enganoso imaginar que o espaço intelectual se restringe aos intelectuais que se tornaram célebres.

Transformações sociais em escala global reverberaram na reconfiguração nas modalidades de participação dos intelectuais nos dias correntes e impactaram suas articulações com a esfera pública, com as instituições de produção e transmissão de conhecimento, em especial com a universidade e com a própria vida cultural e política.

Nesta direção, ao longo do tempo, ocorreu uma crescente diversificação do espaço intelectual. Além de escritores, artistas, cientistas, acadêmicos, passou a contar com a presença de administradores públicos, especialistas em meios de comunicação, jornalistas, blogueiros, entre outras categorias.

Diante deste cenário, no qual estes atores travam uma acirrada luta concorrencial em busca do significado legítimo da figura do intelectual, qualquer definição social a priori sobre este grupo corre o risco de efetuar um "coup de force", incluindo ou excluindo de forma arbitrária os atores deste espaço.

Isso posto, a esfera intelectual ficou mais heterogênea, menos centralizada em personalidades consagradas e mais matizada no que diz respeito aos modos de intervenção ou engajamento destes atores, o que significa também uma intensificação da disputa em torno dos atributos de legitimidade para lidar com questões públicas, assim como em suas relações com as instituições de produção de conhecimento e as organizações políticas ou da sociedade civil.

Os trabalhos de Richard Posner, "Public Intellectuals: A Study of Decline", e de Russell Jacoby, "The Last Intellectuals: American Culture in the Age of Academe", ressaltaram que a expansão das universidades no pós-guerra passou a absorver uma parte expressiva dos intelectuais em seu interior. Para eles, as universidades contemporâneas impulsionaram a diversificação e a especialização do conhecimento, ao mesmo tempo em que profissionalizaram a carreira acadêmica.

Assim, os intelectuais que gradativamente tornaram-se acadêmicos organizaram suas vidas em função dos critérios de suas carreiras e encontram-se submetidos de forma crescente a formas de avaliação institucional.

Ao mesmo tempo, passaram a divulgar seus trabalhos em periódicos especializados, utilizando uma linguagem acessível basicamente aos membros de uma determinada área ou sub-área de conhecimento, tendo como audiência prioritária seus colegas de profissão. Com isso, perderam a comunicação com uma audiência mais ampla.

Atualmente, o ambiente cultural se tornou menos favorável ao tipo de intelectual que marcou o século passado. Patrick Baert, em seu trabalho sobre a figura de Sartre, "The Existentialist Moment: The Rise of Sartre as Public Intellectual", mostrou que as condições de reprodução da figura do intelectual público "universal" ou, como ele prefere, do "intelectual com autoridade" para tratar de temas diversos, para além de sua especialidade profissional, ficaram cada vez mais problemáticas.

Para ele, essa modalidade de intelectual surgiu em sociedades nas quais o capital cultural encontra-se concentrado numa pequena elite e, ao mesmo tempo, em que o meio acadêmico possui uma estrutura amorfa, indicando uma limitada especialização do conhecimento.

A institucionalização das ciências sociais e o surgimento do estruturalismo na França, a partir de 1950, abalaram a posição destacada que ocupava a filosofia, disciplina que constituía em larga medida o celeiro dos intelectuais públicos. Desde então, esses processos de institucionalização e profissionalização das ciências sociais, que ocorrem em várias partes do mundo, têm criado obstáculos para a atuação do intelectual público "universalista", que trata de questões sociais, políticas e culturais desprovido do treino adequado à respectiva área do conhecimento.

No mesmo sentido, a expansão mundial do ensino superior, que vem se processando desde os anos 1970, incrementou o volume da produção, circulação e difusão de conhecimento disponível para a esfera pública, contribuindo também para a disseminação de um sentimento de ceticismo com relação à plausibilidade das formulações realizadas por este tipo de intelectual.

Essas considerações não significam que os intelectuais públicos desapareceram. Ao contrário, trata-se de reconhecer o surgimento de novas formas de intervenção na vida social, transformando o registro de narrativas de declínio ou decadência numa narrativa de mudança na atuação intelectual.

Se determinadas transformações sociais e acadêmicas tornaram mais complexo o surgimento do intelectual público universalista, precisamos indagar o que surgiu em seu lugar. Na esteira da segmentação do conhecimento produzido nas universidades, cujo primado tem norteado a organização dos departamentos, dos laboratórios de pesquisas e direcionado a contratação do corpo docente, crescem as oportunidades de atuação de intelectuais públicos especializadosque utilizam seu conhecimento profissional, proveniente de suas investigações nas ciências sociais ou naturais, para se envolver em debates precisos e relevantes.

A especialização não significa um abandono da crítica ou da preocupação com valores que procuram defender no espaço público. Diferentemente de experts que procuram apoiar suas intervenções na suposta neutralidade de seus conhecimentos, como indício de cientificidade, os intelectuais públicos especializados desenvolvem a crítica sem se identificar com a figura do intelectual universal.

Na década de 1970, quando Michel Foucault formulou sua concepção de intelectual específico, em oposição à figura do intelectual universal, tinha em mente essa forma de engajamento, de tal modo que sua pesquisa sobre a história da punição, exposta em "Vigiar e Punir", estava vinculada à sua luta contra o sistema prisional.

Em sua visão, a função do intelectual não é dizer aos outros o que fazer, tampouco modelar a vontade política dos atores, mas sim repensar, por meio de sua competência profissional, as categorias de análises do mundo social, interrogar as evidências e os postulados rotineiros.

Para ele, a função do intelectual consiste em diagnosticar o presente, longe de raciocinar em termos de totalidade para formular promessas de um tempo vindouro. Busca lutar, a partir de questões circunscritas, contra as diversas formas de poder em situações nas quais ele é mais invisível e insidioso.

Alguns dias após a morte de Foucault, em junho de 1984, Pierre Bourdieu publicou no jornal Le Monde um artigo em sua homenagem. Nele ressaltou que, ao elaborar a noção de intelectual específico, Foucault aliou de forma recorrente a realização de seus trabalhos pontuais com engajamentos políticos, mas abdicou, de forma deliberada, do papel de portador da verdade e da justiça.

Bourdieu, diante do avanço da "restauração conservadora neoliberal", expressão cunhada por ele mesmo, percebeu a necessidade de criar a figura do intelectual coletivo.

Nesse ponto de vista, as intervenções individuais dos intelectuais deixaram de ser suficientes diante da forte presença do neoliberalismo, daí a premência de criar um trabalho de equipe, apoiado nos conhecimentos das ciências sociais, em defesa dos dominados e contra a destruição de uma civilização, conforme ele manifestou em intervenção pública realizada na estação ferroviária de Lyon, durante as greves de 1995. Em sua perspectiva, a ação do intelectual coletivo envolve o difícil equilíbrio entre as atividades de pesquisador e a participação em intervenções públicas sobre temas polêmicos de interesse geral.

Não seria improcedente afirmar que a questão do sucesso dos intelectuais ocupa posição destacada no imaginário social e na opinião pública, em função, principalmente, da visibilidade e celebridade adquiridas pela alta exposição e projeção na mídia.

No entanto, essa obsessão pelo êxito de intelectuais que se destacam na arena pública tende a ofuscar a participação importante de milhares de outros que atuam em espaços locais da vida social. Por não receberem os holofotes da mídia, tornam-se menos visíveis em escala nacional ou planetária.

Esses intelectuais anônimos estão presentes em diversos movimentos, envolvem-se com as comunidades locais e influenciam aspectos sociais, culturais e políticos de suas sociedades. Cada um desses ambientes envolve a interação com um público específico, diversificado e, muitas vezes, denso para a reflexividade social em torno de problemas e formas de ação.

Nessas situações, a relação do intelectual e do saber especializado com outros saberes, tais como aqueles que se desenvolvem em movimentos sociais, organizações e em grupos de profissionais, beneficia-se da dissolução da hierarquia e da autoridade em favor de práticas que levam ao aprendizado mútuo e a um sentimento de participação. São aspectos valorizados na concepção de uma "sociologia pública", tal como defendida por Michael Burawoy, que tem ganhado difusão e variações locais na prática disciplinar.

Os intelectuais também estão inseridos em comunidades epistêmicas, ou seja, em redes formais e/ou informais, localizadas em diversas sociedades nacionais, das quais fazem parte profissionais de diferentes áreas do conhecimento, que operam em dimensões locais e nacionais. Dado que tendem a compartilhar princípios e crenças comuns a respeito de determinadas questões sociais, políticas e culturais, encontram-se inclinados a identificar e intervir em assuntos que consideram de relevância geral.

Com o processo de globalização da esfera cultural e da vida acadêmica, propiciando o intercâmbio de ideias e de informações entre os países, essas comunidades epistêmicas atuam também em plano global, em diversidade de temas, tais como direitos humanos, imigração internacional, aquecimento global, entre outros. Ainda que pouco visíveis individualmente, esses intelectuais contribuem para projetar uma série de questões relevantes para o debate público.

Essas transformações na modalidade de intervenção na sociedade incidem também nas relações com a audiência pública mais ampla, em situações que lidam com causas e questões semelhantes àquelas que marcaram a história dos intelectuais.

Como exemplo, podemos citar os dilemas postos pelas múltiplas dimensões das crises contemporâneas: das emergências climáticas às guerras na Ucrânia e na Palestina, da pandemia à crise das democracias. Em todas elas, o conhecimento especializado constitui um elemento fundamental, porém necessita ser suplementado por uma articulação mais geral de perspectivas éticas, políticas e culturais, que excedem os procedimentos estritamente controlados da pesquisa científica e do trabalho acadêmico mais restrito.

A mobilização do capital cultural e do reconhecimento adquiridos no meio científico são valorizados e podem ser úteis para o acesso à esfera pública, mas não fornecem, por si mesmos, condições de autoridade e para uma intervenção eficaz.

Uma compreensão mais democrática dos intelectuais aponta que seu engajamento no debate público se dá, necessariamente, na condição de um participante que não detém uma posição de enunciação privilegiada, mas está sujeito ao confronto com outros pontos de vista. Apenas assim podem favorecer o autoentendimento das sociedades e de seus problemas.

Assim como determinadas condições sociais propiciaram o surgimento dos intelectuais como uma categoria social no final do século 19, atualmente um conjunto de transformações ocasionou a emergência de novas modalidades de suas presenças na vida social.

São formas mais descentralizadas de intervenções e de modos de participação, possivelmente menos visíveis, quando comparadas com décadas passadas, e que são realizadas, crescentemente, de forma coletiva, em diferentes esferas da sociedade.

Longe de serem insignificantes, esses novos formatos de atuação expressam uma renúncia a uma posição do intelectual como legislador, sem, no entanto, abrir mão de uma postura crítica diante das conjunturas.

Ao mesmo tempo, torna-se oportuno assinalar a persistência de um ethos anti-intelectualista conduzido por parte de grupos políticos de extrema direita, que procuram desacreditar socialmente o conhecimento científico, atacar às produções artística e literária e depreciar a figura de seus autores. Representam, enfim, a contraparte cultural de uma aversão à democracia política.

Essa disposição anti-intelectualista possui uma longa tradição que perpassa a investida de Maurice Barrés, que acusava os apoiadores de Alfred Dreyfus de serem maus franceses, inimigos do instinto vital da nação.

Em tempos recentes, essa perspectiva evidenciou-se, por exemplo, em livros como "Os Intelectuais", de Paul Johnson, que os caracterizam como seres ilógicos, arrogantes, que deveriam ser objeto de constante suspeita e mantidos longe do poder, uma vez que procurariam impor de forma obstinada suas ideias abstratas a homens e mulheres.

No Brasil, essa visão intolerante sobre a vida acadêmica e a produção cultural esteve presente em vários momentos históricos, como durante a ditadura militar instaurada em 1964 e o governo passado que manifestou profunda aversão ao trabalho intelectual.

Diante desse cenário de intimidação, é preciso proteger a liberdade de produção de conhecimento nas esferas artística, literária e científica, assim como seus modos de participação no espaço público.

A autonomia da produção cultural pressupõe a existência de uma sociedade plural, na qual as intervenções dos intelectuais, ao estabelecerem relações entre problemas específicos e questões de interesse público, possuem fundamental relevância social e contribuem igualmente para a preservação de uma sociedade democrática.

*Carlos Benedito Martins, professor titular do Departamento de Sociologia da UnB (Universidade de Brasília)

*Felipe Maia, professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora

 

Um comentário:

Alberto Aggio disse...

O texto é bem interessante, mas lacunar. Não há sequer uma menção a Antonio Gramsci e suas reflexões sobre os intelectuais na construção da esfera política, por assim dizer, onde aparece a figura do intelectual orgânico. Se poderia fazer uma crítica a essa figura, mas nem a isso os autores se deram o trabalho. Uma outra observação lateral é a de que o texto registra o anti-intelectualismo como apenas uma manifestação recente da "extrema direita". Não seria fora de propósito observar que na trajetória do Partido do Trabalhadores, por exemplo, e nas manifestações do núcleo duro da sua principal liderança (nela inclusive) persistiu uma forte marca anti-intelectual, abrindo espaço somente para os intelectuais instrumentais, úteis, mas despresíveia.