Para um carioca acostumado ao frenesi
metropolitano, participar daquele evento democrático naquela cidade foi como
estar ao vivo em um filme de Nelson Pereira dos Santos.
Os anos de grande crescimento econômico para a Venezuela já eram coisas de um passado longínquo. A Caracas que ostentará arranha-céus urbanos que se cruzavam de forma caprichosa não existe mais.
A crise do petróleo da década de 1970
transformou a Venezuela num dos países mais ricos da América. A queda deste
boom em 1983 levou a uma crise econômica prolongada, mas tanto durante os anos
de auge como nos anos magros foram realizadas reformas econômicas e sociais,
enfrentou-se a guerrilha de inspiração cubana nos anos 1960 até conseguir sua
desmobilização nos anos 1970, tendo resistido à onda de ditaduras militares da
América do Sul, tornando-se um oásis de refúgio e liberdade para muitos
migrantes, ao mesmo tempo que não houve capacidade de evitar a corrupção
generalizada durante os bons tempos e o aumento do crime e da violência nos
tempos difíceis.
Embora no seu conjunto tenham sido anos de
progresso, a distribuição medíocre levou a um crescimento do descontentamento
que culminou em protestos sociais que deixaram uma marca profunda com o
"Caracaço" de 1989. Isto desencadeou o ativismo militar e uma
tentativa de golpe de Estado em 1992, chefiado por um tenente-coronel com
tendências revolucionárias e devoto de Fidel Castro, para quem a continuidade
das instituições democráticas não tinha valor. Seu nome era Hugo Chávez.
Fracassado o golpe, Chávez construiu um
caminho eleitoral entendendo que só chegaria ao poder por esses meios e
conseguiu isso em 1999. Os mesmos setores democráticos que haviam caído em
desuso pensavam que talvez no governo Chávez avançassem em direção ao progresso
democrático, mas os seus planos eram outros, movia-se com astúcia e habilidade,
tinha a maioria dos votos e o apoio das armas, a sua revolução levaria o
enigmático nome de Socialismo do século XXI, enigma que levou para o túmulo,
mas isso significou desmantelar a democracia a partir de dentro do poder.
Como é habitual nas aventuras de
reconstrução, a primeira coisa que fez foi aprovar por referendo a mudança do
nome do país com uma visão ao mesmo tempo nacionalista e com uma estranha ideia
de Bolívar, instituindo a República Bolivariana da Venezuela.
Nacionalizou indústrias-chave e com a nova
bonança do petróleo realizou mobilizações sociais, minou as instituições
democráticas e fez melhorias sociais, atacou histrionicamente os EUA em nome de
um anti-imperialismo anacrônico. Ele desenvolveu um apoio maternal a uma Cuba
que mal respirava e fez da Rússia, da China e do Irã os seus interlocutores
favoritos no mundo.
Na América, ele estendeu um apostolado do
petróleo e apoiou tendências semelhantes às suas em vários países que, em graus
variados, abraçaram o seu bolivarianismo. Na verdade, nenhum deles se saiu bem
e o fracasso os uniu mais do que a revolução.
Na Venezuela, os processos eleitorais
tornaram-se cada vez mais suspeitos e a economia foi pelo ralo. Sete milhões de
venezuelanas e venezuelanos fugiram para o estrangeiro, incluindo grupos
criminosos, dada a carência e pobreza do mercado interno. A corrupção regressou
ao seu auge, desta vez nas mãos de novos grupos civis e militares.
O autoritarismo aprofundou-se e as violações
dos direitos humanos aumentaram.
Quando Chávez morreu, foi sucedido por
Nicolás Maduro, o seu homem de confiança, agressivo, com insultos fáceis e um
olhar de peixe morto, sem a sua astúcia nem seu carisma, com um pensamento
tacanho, que venceu uma eleição muito apertada.
Dedicou-se a diminuir qualquer brecha
democrática, terminou de consolidar a ditadura, mas não conseguiu suprimir,
porém, a trajetória eleitoral com que chegou ao poder. A oposição foi
reprimida, presa e espancada, mas continuou a existir para além de todos os
obstáculos e abusos.
Foi assim que aconteceram as eleições de
domingo passado, nas quais a oposição, contra todas as probabilidades, o
enfrentou, apoiando um homem decente como candidato substituto do líder banido.
Já sabemos o que aconteceu, um manto de
abusos, manobras, imprecisões e ameaças parece ter transformado uma ampla
vitória da oposição numa vitória fantasiosa do governo em que nem eles
acreditam. Tudo indica que os números fornecidos por seu governo que nunca fala
a verdade correspondem a uma ação fraudulenta que ficará na história da
antidemocracia. Nenhum país democrático, sob qualquer forma, concordou com
esses absurdos, nem mesmo o Brasil, e devemo-nos sentir orgulhosos disso.
Num mundo tão polarizado, onde as tendências
autoritárias seguem a crescer e a proteger os seus pares, o regresso da
democracia na Venezuela enfrenta um caminho difícil porque o despotismo não vê
futuro fora do poder, mas muito foi construído para baixar as armas agora. É
preciso comprovar o saque, mesmo sob ameaça.
Uma questão que não pode ser evitada surge
neste momento e é válida também para nós no Brasil: é possível, é correto, é
consistente, é aceitável que aqueles que formaram sinceramente a Frente
Democrática vitoriosa em 2022 possam caminhar de braços dados com aqueles que
são solidários com a barbárie antidemocrática? Não estou falando de
coincidências específicas que são a essência da práxis política, estou me
referindo a uma construção estratégica duradoura.
Está claro que em algum momento isso deverá exigir reflexão, esse emparelhamento pode dar frutos imediatos nas eleições de 2024, mas sempre leva a um emaranhado mefistofélico, que leva à perda da alma.
*.Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia
de Saberes.
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