sábado, 7 de dezembro de 2024

Fio da navalha – André Barrocal

CartaCapital

Entre a ira do mercado e a chantagem do Centrão, o governo busca um alívio para a segunda metade do mandato

O governo discutiu por dois meses medidas de controle de gastos públicos antes de o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciar as linhas gerais em cadeia de rádio e tevê na noite de 27 de novembro e detalhá-las em uma coletiva de imprensa no dia seguinte. O pacote contém propostas dolorosas para um presidente eleito e apoiado principalmente pelos mais pobres. Contenção do aumento no salário mínimo, redução do número de beneficiários do abono salarial, pente-fino em programas sociais. Um ministro que participou no gabinete presidencial de reuniões preparatórias do plano afirma: Lula sempre deixou claro que o peso do ajuste não poderia cair apenas nas costas do povão. A tentativa de barrar supersalários no serviço público, a gastança parlamentar com verbas do orçamento e alguns privilégios das Forças Armadas foi pensada para repartir o ônus dos 70 bilhões de reais de ajuste fiscal nos dois últimos anos de Lula. “Queríamos que todo mundo pagasse a conta, mas nenhuma medida pegava o andar de cima”, diz uma testemunha dos acontecimentos.

A certa altura de uma reunião na qual Lula explicitou a necessidade de os mais ricos terem algum ônus, prossegue a testemunha, Haddad comentou que havia estudos amadurecidos na equipe econômica sobre taxar mais os abonados. Misturar ajuste e imposto era algo que o titular da Fazenda preferia evitar, para não melindrar o “mercado”, à espera de sangue e carne. A taxação maior estava em exame há tempos. É a solução para compensar a perda de arrecadação que o governo terá se conseguir cumprir uma promessa eleitoral de 2022, isentar do Imposto de Renda quem ganha até 5 mil reais por mês. “O que mais brilhou o olho do presidente (nas reuniões) era botar o rico no IR”, afirma a testemunha.

No pronunciamento na tevê e rádio, Haddad misturou controle de gastos e reforma do Imposto de Renda. A isenção desenhada pelo governo, não enviada ao Congresso até a quinta-feira 5, dia da conclusão desta reportagem, favorecerá 26 milhões de contribuintes, o equivalente a 61% de quem entregou declarações de IR neste ano, 42 milhões. A intenção de Lula é conseguir aprová-la no Congresso no próximo ano, para que entre em vigor em janeiro de 2026. “A isenção antecipa (a eleição de) 2026 para 2025. É a nossa grande medida para a classe média. Vamos passar o ano debatendo o assunto”, afirma um ministro reticente em relação ao conjunto do pacote, em razão das medidas que atingem a base social lulista e foram, claro, consideradas insuficientes pelo “mercado”, aquela meia dúzia de grandes investidores e bancos estrangeiros ideologicamente avessos à administração petista. A mudança no IR, caso se concretize, beneficiará o eleitorado que tem a opinião mais dividida sobre Lula. Entre os mais pobres, de renda mensal até dois salários mínimos (2,8 mil reais por mês), o petista nada de braçada: 62% de aprovação, conforme pesquisa Genial/Quaest de setembro. Entre os mais ricos, de renda superior a 5 mínimos (7 mil reais), era o contrário: 57% de desaprovação. No grupo intermediário, de 2 a 5 pisos, 51% aprovavam e 46% desaprovavam. O resultado geral do levantamento era quase igual ao desse último grupo, 51% a 45%.

Por ser o Brasil um país de população pobre (salário médio de 3,2 mil reais e renda domiciliar per capita de 1,8 mil), o grosso do eleitorado e da população encontra-se na faixa de renda de até cinco salários mínimos. Os contribuintes que podem vir a bancar a isenção do Imposto de Renda, aqueles que embolsam acima de 50 mil reais por mês, são uma minoria. Daí a reforma ter grande impacto na distribuição de renda. “Temos orgulho de estar entre as dez maiores economias do mundo, mas não temos a vergonha de estar entre os dez mais desiguais?”, disse Haddad em entrevista sobre o pacote.

As centrais sindicais que se manifestaram sobre o pacote – CUT, Força Sindical, NCST, UGT – elogiaram a proposta do IR e criticaram os cortes dos benefícios sociais e da limitação do aumento do mínimo. Caso o Congresso aprove o plano, o salário continuará a ter ganhos reais, mas de no máximo 2,5% ao ano. O abono salarial será pago a menos gente. Em vez de ser um direito de quem recebe até dois pisos, 2.640 reais hoje, com base no valor de 2023, será pago a quem recebe até um e meio. O BPC, benefício a idosos e pessoas com deficiência no valor de um salário mínimo, será impactado com a regra nova e por um processo de recadastramento e biometria, também válidos para os cadastrados no Bolsa Família. Juntas, as medidas representam 26,6 bilhões dos 70 bilhões a serem economizados. “No médio e longo prazo, o pacote é um desastre”, diz o economista Pedro Rossi, da Unicamp, que na terça-feira 3 lançou em Brasília o livro Brasil em ­Disputa, sobre a história da economia brasileira no século XXI. Para Rossi, que entregou a Lula um exemplar na Presidência, os motores da economia e da melhora de vida dos brasileiros nos governos anteriores do presidente e no primeiro mandato de Dilma Rousseff foram o mercado de trabalho e a política de valorização do salário mínimo. Se o freio no piso tal qual proposto agora vigorasse desde 2003, o mínimo estaria abaixo de mil reais, afirma Rossi.

A ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, presente no lançamento do livro, diz que a contenção dos ganhos do mínimo foi a forma encontrada de preservar outros gastos. “O pacote não tem reforma da Previdência, não tem mudança nos pisos da saúde e da educação, que até precisam de mais recursos. Não queríamos mexer em direitos. E não queríamos mexer em investimentos, como os do PAC, que ajudam a economia a crescer.”

De janeiro a setembro, a economia expandiu-se 3,3%, informou o IBGE na terça-feira 3. Ante o terceiro trimestre de 2023, a alta foi de 4%. O resultado trimestral levou a equipe econômica a refazer para cima as projeções para o acumulado do ano. Agora prevê 3,5%. A atividade ­econômica tem sido influenciada pelo mercado de trabalho, como em 2023, ano em que o PIB subiu 3%, não 2,9%, conforme revisão divulgada pelo instituto. O desemprego está no menor patamar registrado pelo órgão desde 2012. Foi de 6,2% em outubro. Com Lula, o número de desocupados e desalentados, aqueles que desistiram de procurar vaga, caiu de 12,6 milhões para 9,8 milhões. A massa salarial, a soma da renda dos trabalhadores, é recorde, 332 bilhões de reais em outubro, 58 bilhões a mais do que em dezembro de 2022. O ciclo de elevação da taxa de juros iniciado pelo Banco Central e o ajuste tendem a reduzir o ritmo de crescimento nos próximos anos. Em 2025, o Ministério da Fazenda projeta uma alta de 2,5% do PIB.

O atual dinamismo do mercado de trabalho e os programas sociais reduziram a pobreza em 2023, ainda de acordo com o IBGE. Deixaram essa condição 8,7 ­milhões de brasileiros. Restaram 59 milhões, o menor contingente desde o início das atuais medições do instituto, em 2012. Quando se olha para a situação dos trabalhadores individualmente, a situação está, porém, longe de ser animadora. O salário médio foi de 3.255 reais em outubro. Há dez anos permanece na casa dos 3 mil, o que significa estagnação social e perda do poder de compra. A inflação de janeiro de 2015 a outubro de 2024 somou 73%. No atual governo, o salário médio subiu 203 reais, ou 6,6%. A inflação acumulada no período foi maior, 8,6%.

O sentimento de estagnação influencia o humor político da população. Na pesquisa Genial/Quaest de setembro, 32% achavam o governo ótimo ou bom, 33% regular e 31%, ruim ou péssimo. O levantamento perguntava sobre economia e poder de compra. Para 41%, a economia havia piorado em 12 meses, enquanto 33% diziam o contrário. Para 22%, estava na mesma. No caso do poder de compra, 61% diziam que era menor do que um ano antes. A percepção de cerca de 60% dos entrevistados era de que as contas de luz, água, combustíveis e alimentos estavam mais altas.

A perda de poder de compra foi um dos principais fatores para a vitória de Donald Trump na eleição norte-americana. No governo Joe Biden, o PIB também cresceu, como no Brasil de Lula, e o desemprego também era baixo (idem), mas a inflação castigou o bolso. A primeira pergunta no único debate televisivo do qual Biden e Trump participaram, havia sido sobre economia e poder de compra. “Nosso ponto de partida é depauperado. Houve um empobrecimento no pós-pandemia”, diz Guilherme Mello, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Uma situação somada a um fenômeno parecido do início do segundo e abortado governo Dilma, causado neste caso por dois anos, 2015 e 2016, de retração do PIB da ordem de 3%. “A recuperação do poder de compra leva tempo. Os brasileiros ainda não têm a sensação de que a vida voltou ao que era antes de 2015. O governo está acelerando para tentar fazer voltar”, diz.

O aumento da faixa de isenção do IR para até 5 mil reais e seu impacto também para quem ganha até 7,5 mil reais farão, segundo Mello, sobrar mais dinheiro no bolso dos trabalhadores, o que tende a melhorar a situação econômica dos indivíduos e famílias independentemente do tamanho do salário. Politicamente, a melhora por si só não basta, admite o secretário. “A percepção é nublada, filtrada pelo ambiente político. O filtro ideológico é uma chave de leitura da realidade. Tem uma parcela da população que dificilmente vai admitir que a melhora de vida é resultado das ações do governo.”

Exemplo de ideologia na filtragem da realidade citado por Mello é o jornal O Globo. Na segunda-feira 2, o diário publicou um editorial intitulado “Milei dá lição de disciplina fiscal para o continente”. Era uma ode ao ultraliberal presidente argentino, Javier Milei, e às imensas tesouradas no gasto e no Estado. O custo dessa “lição”? No primeiro ano do “libertário” no poder, a pobreza subiu de 41% da população para 52% até setembro, segundo dados oficiais, e atingia 25 milhões de cidadãos, recorde em 20 anos. A inflação, uma das causas da pobreza, foi de 107% de janeiro a outubro. A economia do país vizinho deve fechar o ano com queda de 3,5%, nas projeções do Banco Mundial.

Na formação das percepções e visões emanadas a partir da mídia, o sistema financeiro tem papel central. Vários veí­culos de comunicação pertencem a bancos ou butiques de investimento ou se tornaram dependentes da publicidade e dos empréstimos do setor. Os porta-vozes do “mercado” são fontes frequentes, senão únicas, de reportagens. É um setor visceralmente avesso ao governo Lula, embora seja preciso diferenciar nacos da Faria Lima de um lado e os bancos tradicionais, de outro. A Febraban, federação das instituições financeiras, manifestou-se publicamente a favor do pacote do governo. Aquilo que os sindicalistas criticaram, a entidade elogiou. E vice-versa. Segundo uma pesquisa Genial/Quaest da quarta-feira 4, no “mercado” o governo tem uma avaliação negativa de 90%. A má vontade não é apenas ideológica. Erros de análise da própria Faria Lima pesam, na visão de um economista que tem passagens pelo setor, André Perfeito. Em janeiro de 2023, o sistema financeiro apostava em crescimento de 0,7% e em inflação de 5,3% no ano. Números registrados no boletim Focus, pesquisa semanal do Banco Central com analistas financeiros. Na sua primeira estimativa, a equipe econômica lulista previa, em março de 2023, mais PIB e menos inflação: 1,6% e 4,6%, respectivamente. As previsões do governo e do “mercado” só convergiram, para o que desenhava Brasília, no segundo semestre do ano. Resultado no fim do ano: 3% de PIB e 4,6% de inflação.

A despeito da melhora do emprego e da renda média, a massa salarial está estagnada há uma década

O “mercado” subestimou a capacidade da PEC da Transição, medidas aprovadas pelo Congresso no fim de 2022, já sob inspiração do então presidente eleito, de empurrar a economia, como o reajuste real do salário mínimo e um valor maior do Bolsa Família. Em 2024, a novela repetiu-se. Em janeiro, a Faria Lima estimava, via Focus, PIB de 1,5% e inflação de 3,9%. Já a equipe econômica projetava 2,2% e 3,5%, conforme o orçamento proposto ao Congresso ainda em agosto de 2023. Embora 2024 ainda não tenha acabado, as contas oficiais mostram-se de novo mais precisas no caso do PIB. No da inflação, o “mercado” venceu.

Os erros de cálculo, afirma Perfeito, fizeram o “mercado” deixar de ganhar dinheiro. Mais: levaram a turma a cometer outro equívoco, concluir que o Brasil precisa de uma taxa de juros maior do que a imaginada antes para domar a inflação. Tudo somado, a Faria Lima “quer” e acha “necessário”, os sentimentos se misturam, um juro alto do BC e tenta transformar desejo e achismo em realidade por meio de avaliações terroristas sobre as contas públicas e a cotação do dólar.

A partir de janeiro, o banco terá à frente um indicado de Lula, Gabriel Galípolo, circunstância que tende a facilitar as coisas para o petista em seu biênio final no poder. Com o atual comandante da autoridade monetária, o bolsonarista Roberto Campos Neto, a relação é complexa. Para um colaborador presidencial, Campos Neto minou a credibilidade do governo perante o “mercado” em reuniões a portas fechadas nas quais criticava a política fiscal. Espera-se que Galípolo desfaça tal obra.

A eleição de novos presidentes da Câmara e do Senado em fevereiro também tende a facilitar as coisas para Lula no biênio final. Em especial entre os deputados. O atual comandante, Arthur Lira, do PP de Alagoas, dificultou a vida do governo sempre que pôde, em busca de manter o poder conquistado pelo tal “Centrão”, e encarnado por ele, à base de “emendas parlamentares”. O pacote do governo bota o Congresso para pagar parte da conta do ajuste, via contenção das verbas destinadas a emendas. Daqueles 70 bilhões de ­reais de ajuste em dois anos, 14 bilhões iriam para projetos indicados por parlamentares, obras inseridas no orçamento federal.

No capítulo “emendas”, os parlamentares não estão revoltados apenas com o governo. Estão enfezados com a cruzada de Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal. Dino, recorde-se, foi indicado por Lula. Na segunda-feira 2, o juiz autorizou a volta da liberação de verbas federais. Havia fechado a torneira em agosto, com endosso do plenário do tribunal. Ao reabri-la, impôs, no entanto, tantas condições, unanimemente avalizadas pelos colegas, que na prática será difícil o pagamento acontecer. Emenda sem autor e destinatário conhecidos e divulgada em site não pode mais. Emenda do tipo “Pix” requer plano de trabalho prévio. Na área da saúde, a mais privilegiada, emenda depende da concordância do ministério. “É de clareza solar que jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público (quanto com emendas agora)”, escreveu Dino na decisão. “Nenhuma despesa no Brasil teve similar trajetória em desfavor da responsabilidade fiscal.” Em 2015, a lei orçamentária tinha 9 bilhões de reais para emendas. Cinco anos depois, 36 bilhões. Agora, 49 bilhões. Graças a ­esse poder, o Congresso promoveu uma espécie de “parlamentarismo disfarçado”. “Não é excessivo afirmar que hoje, no mundo, há os países a) presidencialistas; b) parlamentaristas; c) semipresidencialistas; e d) o Brasil, com um sistema de governo absolutamente singular no concerto das nações”, anotou Dino no despacho.

Lira, líder do “Centrão”, o senhor das emendas, reclamou publicamente da decisão. “Causa muita, muita intranquilidade legislativa.” A rebelião parlamentar em prol das emendas é uma das barreiras à aprovação do pacote fiscal do governo e da reforma do IR. E há outro ­lobby potencial para montar um obstáculo maior. Juízes e integrantes do Ministério Público são contra a proposta de acabar com supersalários no serviço público, medida cujo tamanho em valores ainda é desconhecido. Os militares torcem o nariz para a ideia de uma idade mínima de 55 anos para suas aposentadorias, entre eles chamada de “reserva”, do fim de pensões transferidas entre parentes e de contribuições unificadas ao sistema de saúde. Esse trio de ajustes garantiria 2 bilhões de reais, no pacote de 70 bilhões do governo. Para alcançar o eleitorado em 2026 na busca pela reeleição, o governo precisará derrotar certos grupos de influência desde já. •

Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.

 

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Que artigão!

Anônimo disse...

Maior que isto só o rombo no orçamento provocado pelo 'roubo secreto' do congresso apropriando-se indevidamente de verbas que deveriam ser destinadas ao povo, não aos ladrões eleitos com votos comprados com dinheiro público.
PCC perde!