sábado, 7 de dezembro de 2024

Da Coreia à França, a crise das democracias - Fareed Zakaria

Washington Post / O Estado de S. Paulo

As pessoas estão cada vez mais desconfiadas das instituições tradicionais e das elites que as dirigem

A democracia liberal foi marcada por ênfase em procedimentos, não em resultados

Foi uma semana e tanto em todo o mundo. O presidente da Coreia do Sul colocou o país sob lei marcial, mas foi rejeitado pelo Parlamento. Na França, o primeiro-ministro e seu governo receberam um voto de não confiança pela primeira vez em mais de 60 anos. Esses eventos distintos têm um tema subjacente comum: uma crise das instituições democráticas.

Aparentemente, a Coreia do Sul é uma incrível história de sucesso. Sua economia cresceu mais de 5% por cinco décadas consecutivas, um recorde igualado apenas por Taiwan. O país hoje é mais rico que o Japão em termos de PIB per capita. Ainda assim, foi abalado por profunda polarização e batalhas políticas.

O pano de fundo para o anúncio da lei marcial pelo presidente, Yoon Suk Yeol, foi o impasse entre a oposição liberal e o presidente conservador. A oposição o acusou de usar seus poderes para atacar oponentes e mídia. Ele acusou a oposição de abusar de seus poderes ao tentar impugnar membros de seu governo. A disputa deve terminar com seu impeachment.

Na França, a história é diferente, mas rima. O presidente, Emmanuel Macron, vem tentando promover reformas, muitas das quais desencadearam intensa oposição. Sua última grande, que aumentou a idade da aposentaria, só pôde ser promulgada por meio de um procedimento raramente usado que contornou o Parlamento.

DESCONFIANÇA. Nas últimas eleições, seu partido centrista foi dizimado, e o Parlamento agora é dominado pela extrema direita e esquerda. Eles conspiraram para derrubar o primeiro-ministro.

O tema comum é que as pessoas estão cada vez mais desconfiadas das instituições democráticas tradicionais e das elites que as dirigem. Em pesquisa de 2023, do Pew Research Center, 85% dos adultos dos

EUA disseram que sentiam raiva ou frustração em relação ao governo. Esse sentimento em relação às elites governantes não se limita aos EUA. Partidos tradicionais em todo lugar – da Alemanha ao Japão – estão sendo atingidos nas pesquisas.

Estamos vivendo em um período de mudança rápida, o que eu chamei de “era das revoluções” – econômica, tecnológica e cultural. Velhos padrões estão sendo deixados para trás.

A Coreia do Sul agora enfrenta uma nova era de crescimento mais lento e declínio demográfico, tudo combinado com maiores aspirações sociais. A Europa enfrenta uma nova era de ameaças da Rússia, competição econômica da China e uma

América menos disposta a ser uma líder generosa.

As pessoas têm notado o declínio da confiança em muitas sociedades, especialmente nos EUA. Mas, como o escritor Derek Thompson observou, o que está realmente acontecendo não é apenas um declínio, mas uma mudança de confiança.

As pessoas perderam a confiança nos médicos e estão colocando cada vez mais sua confiança em podcasters como Andrew Huberman e Peter Attia (e até em políticos como Robert F. Kennedy Jr.). Elas perderam a confiança na mídia tradicional e estão transferindo essa confiança para jornalistas e comentaristas individuais.

Dezenas de milhões de republicanos perderam a fé em seu partido e depositaram suas esperanças em um único indivíduo: Donald Trump. Essa mudança de instituições para indivíduos é possibilitada por novas tecnologias que permitem que indivíduos tenham o tipo de alcance e influência que antes era reserva de grandes organizações.

INSTITUIÇÕES. O problema é que a democracia é sustentada por instituições e procedimentos. Governo por indivíduo é, no fim, governo por capricho. O Nobel de Economia deste ano foi para estudiosos que fazem perguntas simples. Por que a maioria dos países não consegue se tornar rica e bemsucedida? E o que explica os poucos que conseguem? A resposta deles: instituições fortes.

O punhado de países que conseguiu sair da pobreza e do mau governo estabeleceu boas e justas instituições e procedimentos que vão além de qualquer indivíduo. Isso explica por que a Suíça, pobre em recursos e sem saída para o mar, se tornou um dos países mais ricos do mundo, enquanto outros países com as mesmas características estão atolados em disfunção. É por isso que Cingapura, uma barra de areia no Sudeste Asiático, agora tem uma das maiores rendas médias do mundo.

FALHAS. A democracia liberal foi marcada pela ênfase em procedimentos, não em resultados. Honramos o processo mesmo quando não gostamos do resultado. A pressa de obter rapidamente o que queremos, mesmo com o custo de contornar procedimentos e minar instituições, é profundamente perigosa. Isso é verdade quando é Trump nomeando fiéis para chefiar departamentos-chave do governo. E é verdade quando Joe Biden perdoa seu filho após prometer o que não interferiria no Judiciário.

Se, por frustração com nossos problemas transitórios atuais, desistirmos das instituições duradouras que construíram a democracia liberal, estaremos virando as costas para uma das realizações mais significativas da humanidade na história moderna.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito boa a análise. Talvez seja o individualismo exacerbado agora refletido nas escolhas políticas, já que as instituições visam (ou deveriam) o bem comum, coletivo, e cada um está preocupado consigo mesmo, com o curto prazo.

Mais um amador disse...

Pelo menos, dois apontamentos sobre o artigo :

• Desconfie de quem diz " em todo mundo "

• Sobre países ricos e pobres, guardados todos os méritos de " Por que as nações fracassam ", sugiro outro enfoque do mesmo problema em " Como os países ficaram ricos... E por que os países pobres continuam pobres ", de Erik Reinert

Como em quase tudo que se relaciona à construção ou análise de nós mesmos e nossas sociedades, há outros pontos questionáveis na coluna, mas okays.

👍🏻