quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A química política. Por Merval Pereira

O Globo

As relações pessoais entre presidentes do Brasil e dos Estados Unidos raramente tiveram tanta importância quanto durante a atual crise

As relações pessoais entre presidentes do Brasil e dos Estados Unidos têm tido seu papel no diálogo entre os dois países, mas raramente tiveram tanta importância quanto durante a atual crise. O presidente Trump nunca se disse amigo do ex-presidente Bolsonaro, mas tem uma história pessoal a ligá-los, de maneira equivocada, mas influente. Trump também tentou impedir a vitória do democrata Joe Biden, assim como Bolsonaro tentou até um golpe de Estado para impedir seu adversário Lula de assumir a Presidência da República. Além do mais, ambos são políticos reacionários, conservadores, autoritários.

Por isso a surpresa geral quando o próprio Trump revelou, em improviso no seu pronunciamento da ONU, que tivera “boa química” com Lula, em plena vigência de sanções duríssimas contra o Brasil e depois de ter recebido críticas certeiras do brasileiro na abertura da Assembleia Geral da ONU e de ter feito discurso também agressivo. No entanto, nos bastidores, rolou um clima entre os dois. Lula, embora satisfeito com a aparente vitória inicial, mantém-se na defensiva, esperando os próximos passos e lembrando que, química mesmo, ele teve com o ex-presidente americano George W. Bush.

Os governantes brasileiros sempre preferiram que candidatos republicanos ganhassem a eleição americana, pois eram mais abertos ao comércio internacional que os democratas (isso já não representa a realidade). O que uniu mesmo Lula e Bush filho foi o sentimento de ambos serem rejeitados pela elite intelectual. Bush sentia-se discriminado em Harvard, e Lula sentia-se rejeitado pela origem humilde. Tanto que, no primeiro encontro, Lula tomou a palavra e disse:

— Nós dois somos subestimados.

Em dezembro de 2002, antes mesmo de tomar posse no Planalto pela primeira vez, o petista visitou Bush na Casa Branca. Durante a campanha eleitoral, José Dirceu também desembarcou em Washington, carregando uma cópia da “Carta ao Povo Brasileiro” — idealizada para acalmar o mercado financeiro — traduzida para o inglês. Três anos depois, em 2005, após derrotar o plano dos Estados Unidos para pôr de pé a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), Lula recebeu Bush e sua mulher, Laura, para um churrasco na Granja do Torto.

O sucessor de Bush, o democrata Barack Obama, pareceu enfeitiçado pelo carisma de Lula, a ponto de designá-lo como “o cara” numa reunião de mandatários internacionais. Mas Obama, depois do escândalo do mensalão, se arrependeu. No último ano de seu segundo mandato, o Brasil tentou intermediar um acordo nuclear entre Irã e Estados Unidos, coadjuvado pela Turquia, mas rejeitado pelos americanos. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem relação de amizade duradoura com o ex-presidente Bill Clinton, e ela serviu até mesmo para liberação de um empréstimo do FMI durante as muitas crises internacionais que teve de enfrentar.

A relação mais traumática foi a que tirou do Brasil a vaga de membro permanente do Conselho de Segurança da recém-fundada ONU, depois da Segunda Guerra Mundial. O diplomata Eugênio Vargas Garcia conta a história no livro “O sexto membro permanente”, com base em documentos, alguns inéditos, pesquisados tanto em arquivos nos Estados Unidos como no Brasil. O então presidente Franklin Roosevelt instruiu sua delegação em Dumbarton Oaks a sugerir que o Brasil fosse considerado o sexto membro permanente (França e China seriam os outros), mas sua morte, pouco antes da Conferência de São Francisco, eliminou em definitivo a possibilidade. Quando a Conferência de Yalta teve lugar, a conjuntura já havia mudado, a guerra se aproximava do fim, o perigo maior havia passado, e havia sido esquecida a importância estratégica que o Brasil teve na luta contra o Eixo (bases aéreas no Nordeste) ou na contenção da Argentina “antiamericana”.

 

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