O Estado de S. Paulo
Desvirtuamento do papel do BC, autodefesa corporativa no Congresso e paralisia no Executivo desenham quadro de desmanche institucional
É especialmente tensa a situação que o Brasil
atravessa, e não dá para deixar de apontar que este é um momento de grande
risco para a democracia. É algo novo para o País que emergiu do fim da
ditadura. Não há dúvida de que os anos em que o PSDB governou o Brasil e o
primeiro governo Lula, até a emergência do mensalão, mostraram um país ancorado
em instituições sólidas. Lógico que crises ocorreram, mas o sentido era de
construção democrática dos caminhos do futuro.
De lá para cá, não há como negar que o País perdeu o rumo. As posições foram se tornando cada vez mais antagônicas e deixou de existir uma força política de centro com projeto econômico e social para o País. Em verdade, é difícil dizer que os partidos políticos representem visões sobre o Brasil. É mais honesto caracterizá-los como grupamentos de oportunidade.
O Congresso Nacional é o maior indicador e
talvez o grande motor da deterioração institucional. Legislar sobre os
interesses nacionais deixou de ser o foco do dia a dia do Congresso. Toda a
atenção se volta para salvar um grupo golpista, na forma da anistia. Pior, sua
companheira, a PEC da Blindagem, ganhou força, para dificultar as condições do
Poder Judiciário de exercer seu papel de monitorar o comportamento dos
parlamentares ante o cumprimento das leis a que todos estamos sujeitos.
O show de horrores que o Congresso tem
proporcionado ao Brasil e ao mundo parece não ter limites. Um deputado que
exerce seu mandato do exterior, orientando outro país para destruir empresas e
empregos brasileiros, quase vira líder da Minoria. As Mesas Diretoras são,
fisicamente, ocupadas por amotinamentos. Tudo isso misturado com bilhões em
emendas parlamentares sem aferição de efetividade do gasto, para não falar de
todas as dúvidas sobre sua moralidade.
O fim de semana passado, com muitas
manifestações contra o descalabro da direita e dos oportunistas, ao menos
trouxe alguma esperança de que os absurdos não ganhem efetivação.
No Executivo, a situação não é menos
preocupante. Há tempos que a máquina administrativa tem dificuldades em operar
seus instrumentos. O governo Lula ainda procura uma marca eleitoral para 2026.
É verdade que Donald Trump e Eduardo Bolsonaro conseguiram entregar a Lula a
condição de baluarte da defesa da soberania. No entanto, quando um presidente
tem de fazer reunião para cobrar de seus ministros a defesa do governo, há algo
de muito errado.
Tudo isso já seria um desastre de grandes
proporções, mas ainda tem mais. Como o quadro político enseja uma grande
dificuldade de fazer política fiscal, o Banco Central (BC) do Brasil,
heroicamente, vai além de seu papel como gestor da política monetária e se
arvora em defensor da governabilidade, ou melhor, do que ele entende por
governabilidade: juros nas alturas. Com a Selic estacionada num patamar de 15%
ao ano, o BC insiste num receituário que pouco dialoga com a realidade da
economia.
O discurso técnico é de “prudência monetária”,
mas a realidade é que o BC atua de maneira semelhante aos políticos que
demoniza, não prestando contas das razões que o levam manter a taxa de juro
real em 9,51%, com base no mais recente Focus/ BC, quando a inflação está em
queda e a economia mostra sinais de reversão. Para preservar sua independência,
o BC deveria começar explicando suas decisões.
Desvirtuamento do papel do Banco Central,
autodefesa corporativa no Congresso e paralisia no Executivo desenham um quadro
de desmanche institucional. Não se trata apenas de ineficiência administrativa
ou de escolhas equivocadas de política econômica. O que está em jogo é a
própria capacidade do Brasil de sustentar um ambiente democrático, com regras
estáveis, instituições respeitadas e horizonte de previsibilidade para cidadãos
e empresas.
É claro que os problemas não começaram ontem.
Mas o momento atual é marcado por uma combinação explosiva: juros
estratosféricos que inviabilizam o crescimento, um Congresso autocentrado e um
Executivo hesitante. A convergência desses fatores mina a confiança da
sociedade nas instituições e aprofunda a descrença em relação à democracia.
O desmanche institucional não acontece de
forma abrupta, mas por erosão contínua. É como se o edifício democrático fosse
corroído pouco a pouco: uma decisão monetária desconectada da realidade aqui,
um projeto de autoproteção legislativa ali, uma omissão do Executivo acolá. Aos
poucos, as bases de confiança e legitimidade se fragilizam, e o País entra num
ciclo de paralisia e descrédito.
O Brasil parece avançar perigosamente nessa
direção. A manutenção de juros impraticáveis, a relativização de crimes contra
a ordem democrática e a incapacidade de governar compõem um mosaico que, se não
for revertido, poderá comprometer seriamente o futuro do País. A voz das ruas,
no fim de semana passado, pode ter sido aquele momento de ruptura, de recuperar
a civilização e negar a barbárie.
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