O Estado de S. Paulo
A apropriação do Orçamento público discricionário pelo Legislativo deveria estar no topo das preocupações nacionais
O Congresso Nacional chegou ao ápice em
matéria de distanciamento do sentimento do povo. A agenda de políticas públicas
pretendida pelo governo de plantão, independentemente do matiz ou da coloração,
parece ficar em último plano na escolha de prioridades legislativas.
Não apenas exime-se de discussões relevantes, a exemplo do ajuste fiscal, como colabora para desorganizar ainda mais as contas públicas. O caso da desoneração da folha entrou para a História. O Executivo precisou acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para que este dissesse o óbvio: responsabilidade fiscal é preceito constitucional.
Não se aprova medida para reduzir receitas ou
ampliar gastos sem apresentar os cálculos e sem a devida compensação. De que vale
aprovar regra fiscal atrás de regra fiscal, uma mais sofisticada que a outra,
se não somos capazes de respeitá-las? O Congresso aplaudiu o teto de gastos e
aplaudiu o Novo Arcabouço Fiscal. Mas está disposto a contribuir para que as
regras sejam cumpridas?
Em paralelo à redução da pobreza e aos
resultados colhidos pelo governo Lula, com todos os problemas que possamos
apontar, o Legislativo tem escolhido a estranha posição de liderar agendas
constitucionalmente reservadas ao Executivo. Arvora-se, ainda, no direito de
gerenciar mais de R$ 50 bilhões do Orçamento-Geral da União em emendas
parlamentares.
É uma espécie de síndrome de Poder Executivo.
O Legislativo que aí está quer governar. Gostou da ideia de enviar emendas Pix
para suas bases como se não houvesse amanhã e sem qualquer controle, até que
viesse a atuação do STF, a ser comentada a seguir.
A Constituição federal é direta ao separar as
funções dos Poderes e ao obrigá-los à harmonia, com independência. Não cabe ao
Poder Executivo legislar, assim como não aproveita ao País o avanço do
Legislativo sobre a gestão e a execução de políticas públicas.
As emendas parlamentares precisariam estar
circunscritas à correção de erros e, quando coubesse, ao cancelamento de uma
despesa para dar lugar a outra. Atividade, como se vê, secundária, sobretudo em
comparação com as funções centrais reservadas ao Congresso no processo
orçamentário: fiscalizar, dar parecer, acompanhar a execução, cobrar resultados
e monitorar.
Ocorre que tudo caminha em contraposição a
essa lógica e a esse espírito da Constituição.
O Congresso comanda, hoje, fatia
correspondente a cerca de ¼ das despesas livres, conhecidas, no jargão, como
discricionárias ou não obrigatórias.
Tais conceitos, vale dizer, estão soltos no
ar, sem um embasamento legal à altura, o que precisaria constar de Lei Geral de
Finanças Públicas atualizada. A lei em vigor foi aprovada ainda no período do
presidente João Goulart. Ela é anacrônica e precisa ser modernizada para dar
conta de todos os avanços institucionais e legais ocorridos, sobretudo, desde a
promulgação da Constituição Cidadã.
Veja-se que avançamos muito em matéria de
normas fiscais para dar conta de regras ao comportamento das despesas públicas
e do resultado orçamentário e fiscal. De outro lado, o mais basilar – uma lei
conceitual, de criação de processos e procedimentos, de definição de parâmetros
e referências – tem sido deixado para depois.
Para ter claro: por que, por exemplo, o
investimento é considerado despesa de segunda categoria, ao passo que a
Previdência Social, por sua vez, de primeira? Seria pouco importante ao
desenvolvimento econômico e à promoção da justiça social que se ampliasse o
investimento em infraestrutura?
Vamo-nos entender: na atual classificação, o
dinheiro público destinado à hipotética construção de uma usina hidrelétrica
vale menos que a mesma quantia classificada para uma emenda parlamentar. Sim,
porque esta última, hoje, é blindada de qualquer tipo de corte,
contingenciamento ou bloqueio. Qual a razão?
O Brasil perdeu a capacidade de planejar. O
Estado brasileiro está mergulhado em verdadeira armadilha. Sua saúde financeira
e fiscal é frágil, com dívida alta e crescente, e sua capacidade de estimular o
crescimento econômico, quase nula.
Os investimentos públicos agregados nunca
foram tão baixos. Sem eles e sob Selic estratosférica, com juros reais em
patamares surreais, é impressionante que ainda exista investimento privado no
Brasil. A desindustrialização segue firme e nossas respostas acabam sendo
improvisadas e insuficientes. Não há um plano de voo e a política econômica
peca pela mesmice, sem fazer direito nem mesmo a lição de casa mais básica:
entregar um superávit primário mínimo.
A apropriação do Orçamento público
discricionário pelo Legislativo deveria estar no topo das preocupações
nacionais. Ela destrói potencial de crescimento. É um alento que se possa
contar, neste momento, com a atuação certeira do ministro Flávio Dino, no STF,
para colocar o eficaz desinfetante sobre este bolor das emendas: a luz do sol.
Mas é sintomático que não se consiga corrigir
os erros cometidos até aqui. Não existe grandeza suficiente nem tampouco crise
de consciência? O que se pede é o reconhecimento de que o Orçamento é de
iniciativa do Executivo. Ou não vale a Constituição? •
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