quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O resgate do Orçamento público. Por Felipe Salto

O Estado de S. Paulo

A apropriação do Orçamento público discricionário pelo Legislativo deveria estar no topo das preocupações nacionais

O Congresso Nacional chegou ao ápice em matéria de distanciamento do sentimento do povo. A agenda de políticas públicas pretendida pelo governo de plantão, independentemente do matiz ou da coloração, parece ficar em último plano na escolha de prioridades legislativas.

Não apenas exime-se de discussões relevantes, a exemplo do ajuste fiscal, como colabora para desorganizar ainda mais as contas públicas. O caso da desoneração da folha entrou para a História. O Executivo precisou acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para que este dissesse o óbvio: responsabilidade fiscal é preceito constitucional.

Não se aprova medida para reduzir receitas ou ampliar gastos sem apresentar os cálculos e sem a devida compensação. De que vale aprovar regra fiscal atrás de regra fiscal, uma mais sofisticada que a outra, se não somos capazes de respeitá-las? O Congresso aplaudiu o teto de gastos e aplaudiu o Novo Arcabouço Fiscal. Mas está disposto a contribuir para que as regras sejam cumpridas?

Em paralelo à redução da pobreza e aos resultados colhidos pelo governo Lula, com todos os problemas que possamos apontar, o Legislativo tem escolhido a estranha posição de liderar agendas constitucionalmente reservadas ao Executivo. Arvora-se, ainda, no direito de gerenciar mais de R$ 50 bilhões do Orçamento-Geral da União em emendas parlamentares.

É uma espécie de síndrome de Poder Executivo. O Legislativo que aí está quer governar. Gostou da ideia de enviar emendas Pix para suas bases como se não houvesse amanhã e sem qualquer controle, até que viesse a atuação do STF, a ser comentada a seguir.

A Constituição federal é direta ao separar as funções dos Poderes e ao obrigá-los à harmonia, com independência. Não cabe ao Poder Executivo legislar, assim como não aproveita ao País o avanço do Legislativo sobre a gestão e a execução de políticas públicas.

As emendas parlamentares precisariam estar circunscritas à correção de erros e, quando coubesse, ao cancelamento de uma despesa para dar lugar a outra. Atividade, como se vê, secundária, sobretudo em comparação com as funções centrais reservadas ao Congresso no processo orçamentário: fiscalizar, dar parecer, acompanhar a execução, cobrar resultados e monitorar.

Ocorre que tudo caminha em contraposição a essa lógica e a esse espírito da Constituição.

O Congresso comanda, hoje, fatia correspondente a cerca de ¼ das despesas livres, conhecidas, no jargão, como discricionárias ou não obrigatórias.

Tais conceitos, vale dizer, estão soltos no ar, sem um embasamento legal à altura, o que precisaria constar de Lei Geral de Finanças Públicas atualizada. A lei em vigor foi aprovada ainda no período do presidente João Goulart. Ela é anacrônica e precisa ser modernizada para dar conta de todos os avanços institucionais e legais ocorridos, sobretudo, desde a promulgação da Constituição Cidadã.

Veja-se que avançamos muito em matéria de normas fiscais para dar conta de regras ao comportamento das despesas públicas e do resultado orçamentário e fiscal. De outro lado, o mais basilar – uma lei conceitual, de criação de processos e procedimentos, de definição de parâmetros e referências – tem sido deixado para depois.

Para ter claro: por que, por exemplo, o investimento é considerado despesa de segunda categoria, ao passo que a Previdência Social, por sua vez, de primeira? Seria pouco importante ao desenvolvimento econômico e à promoção da justiça social que se ampliasse o investimento em infraestrutura?

Vamo-nos entender: na atual classificação, o dinheiro público destinado à hipotética construção de uma usina hidrelétrica vale menos que a mesma quantia classificada para uma emenda parlamentar. Sim, porque esta última, hoje, é blindada de qualquer tipo de corte, contingenciamento ou bloqueio. Qual a razão?

O Brasil perdeu a capacidade de planejar. O Estado brasileiro está mergulhado em verdadeira armadilha. Sua saúde financeira e fiscal é frágil, com dívida alta e crescente, e sua capacidade de estimular o crescimento econômico, quase nula.

Os investimentos públicos agregados nunca foram tão baixos. Sem eles e sob Selic estratosférica, com juros reais em patamares surreais, é impressionante que ainda exista investimento privado no Brasil. A desindustrialização segue firme e nossas respostas acabam sendo improvisadas e insuficientes. Não há um plano de voo e a política econômica peca pela mesmice, sem fazer direito nem mesmo a lição de casa mais básica: entregar um superávit primário mínimo.

A apropriação do Orçamento público discricionário pelo Legislativo deveria estar no topo das preocupações nacionais. Ela destrói potencial de crescimento. É um alento que se possa contar, neste momento, com a atuação certeira do ministro Flávio Dino, no STF, para colocar o eficaz desinfetante sobre este bolor das emendas: a luz do sol.

Mas é sintomático que não se consiga corrigir os erros cometidos até aqui. Não existe grandeza suficiente nem tampouco crise de consciência? O que se pede é o reconhecimento de que o Orçamento é de iniciativa do Executivo. Ou não vale a Constituição? •

 

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