sábado, 1 de novembro de 2025

A leucena e o Alemão, por Eduardo Affonso

O Globo

A tal pacificação incluía implantar um policiamento mais presente e mais humano, permitir acesso aos serviços básicos

A leucena é uma planta exótica que prolifera de forma desenfreada. Sua estratégia é produzir muitas sementes, que germinam com facilidade, e liberar um composto que inibe o crescimento de outras espécies ao seu redor. Virou uma praga nas margens do Canal de Marapendi, sufocando a vegetação nativa e ameaçando a biodiversidade.

Volta e meia acontece uma “revitalização” do canal. As folhas são varridas (as amendoeiras que as produzem continuam lá, sem dar frutos comestíveis, sem atrair pássaros, sem permitir que a flora se desenvolva). Mesmo as árvores mortas permanecem. É trabalhoso remover o tronco e as raízes, plantar no lugar uma quaresmeira, um ipê, um jequitibá. As leucenas são cortadas — arrancá-las também dá trabalho — e rebrotam com ainda mais vigor. A erva-de-passarinho que estiver ao alcance da mão vai para a caçamba — o resto é deixado e se espalha para parasitar (até matar) o que tiver sobrevivido às espécies invasoras.

Na faixa entre a rua e a ciclovia — no que deveria ser um jardim —, os zelosos revitalizadores abrem pequenos sulcos na terra dura e ali enfiam mudas do que parece ser uma forração. A terra não é revolvida nem adubada; o buraco é o suficiente para que 1 centímetro da muda possa ser enterrado. Não há rega, não há proteção. A muda morrerá de sede ou pisoteada antes que o trabalho (de Sísifo) seja retomado no dia seguinte.

Quando (se...) a “revitalização” chegar ao fim deste trecho onde moro, o início já terá sido de novo tomado pelas leucenas, pela erva-de-passarinho. As mudas eventualmente plantadas (e jamais cuidadas) estarão há muito no Nosso Lar dos vegetais.

Corta para 2010, Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha. O poder público havia resolvido recuperar esses territórios, implantar ali Unidades de Polícia Pacificadora. Lá fui eu, com uma máquina fotográfica e a vontade de conhecer esse Brasil paralelo, tão perto, tão distante. Conversei com muita gente, todo mundo ainda cético, ressabiado. Um morador me levou à sua casa – arrombada (e revirada) cinco vezes por policiais. Tinha mais medo da polícia que dos traficantes.

A tal pacificação incluía implantar um policiamento mais presente e mais humano, permitir acesso aos serviços básicos, desarticular o crime organizado, criar condições para que os moradores se tornassem cidadãos livres, não mais reféns de bandidos.

Cortaram as leucenas; não arrancaram as raízes. Podaram alguns galhos com erva-de-passarinho, deixaram o resto. Fincaram mudinhas no chão seco. Como aqui, no Canal, devem ter recolhido o lixo, sem instalar lixeiras, sem nenhum projeto de educação ambiental. Removeram parte da vegetação invasora, não reflorestaram.

Em 2015, uma operação no Complexo teve saldo de 19 mortos. Em 2022, foram 17. Nesta semana, 121 (incluindo quatro policiais). Vendo a imagem dos corpos enfileirados no asfalto, me ocorreu que algum deles poderia ser de uma das crianças que fotografei, 15 anos atrás, empinando pipa no alto do morro. E que ainda se vai desperdiçar muito dinheiro e derramar muito sangue até que decidam erradicar as leucenas, não apenas podá-las. Contra todos os defensores das espécies exóticas (e há muitos), disseminar pitangueiras, sapucaias, mulungus, pau-brasil. E não abandonar as mudas ao deus-dará.

 

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