Folha de S. Paulo
Foi chacina sim, mas nem todo apoio à chacina é de extrema direita; parte é medo antigo, dor acumulada e certeza de abandono
Brasil é conservador e se agarra a respostas
autoritárias quando o Estado some
A foto dos corpos alinhados no chão não pede
legenda. Foi chacina.
Chacina não é um desastre natural que mata por acaso, como um terremoto ou uma
enchente. A operação
comandada pelo governador do Rio, Cláudio
Castro, teve planejamento, fuzil, aval e coletiva de imprensa. É bom
lembrar que no Brasil não existe pena de morte –oficialmente, não.
As reações, como sempre, vieram no automático
da nossa rinha: um lado romantiza a violência estatal,
o outro finge que segurança pública se resolve com discurso. Tratar morto como
"dano colateral" é covardia travestida de coragem. E, ainda assim, há
algo que precisa ser dito com a mesma franqueza: para parte de quem aplaude,
não é ideologia — é desespero.
Uma pesquisa da AtlasIntel, divulgada nesta sexta (31), mostra que oito em cada 10 moradores de favelas do Rio de Janeiro apoiam a "ação" contra o Comando Vermelho nos Complexos da Penha e do Alemão. Sim, foi uma chacina. Portanto, é preciso olhar com mais atenção porque tanta gente aplaude o discurso criminoso de que a mortandade produzida pelo Estado foi um sucesso.
Humanizar a crítica à brutalidade policial
inclui olhar com sensibilidade para uma parte de quem apoiou a operação: os
moradores de favela. É preciso se compadecer das mães
que enterram filhos, enxergar as famílias que perderam gente
primeiro para o crime e depois para o Estado, ao mesmo tempo em que se
reconhece que o diagnóstico do problema é muito mais complexo do que tratar a
todos como militantes de extrema direita.
Sim, Arthur
do Val, ex-deputado, que acha que mulheres ucranianas "são fáceis
porque são pobres", é um fascista, que bota na conta
das mães periféricas a morte de seus próprios filhos. Nikolas
Ferreira (PL), para quem é "só matar outros 120", é outro. A
lista de políticos, de celebridades, de gente comum que prefere atropelar o
Estado democrático de Direito é grande. Uma turma para quem a solução para a
criminalidade nos morros deve ser bala e concreto em cima.
Eu me refiro a milhões de pessoas no país que
vivem sob a lei do fuzil: pagam "mensalidade" para abrir o portão,
compram luz de bandido, internet de miliciano, água de atravessador. Conheço
histórias de quem, aos 50, teve infarto depois de abandonar casa e comércio
tomados por traficantes. Mulher obrigada a "namorar" homem armado.
Dentista extorquido em pleno expediente. A rotina é essa: medo como regra. Nessa
trincheira, a promessa de "entrar atirando" soa, para muitos, como a
única saída.
É fácil dizer que são todos fascistas. É
confortável —e preguiçoso. O Brasil
é conservador, e se agarra a respostas autoritárias quando o Estado some.
Da mesma forma que é miopia achar que "direita" é sinônimo de gente
endinheirada, é delírio imaginar que só um punhado de extremistas vibrou com a
operação.
Foi chacina, sim, chacina, assinada
pela polícia
do Rio. Mas também não me peça cegueira: reagir à dor com carimbo
ideológico é elitismo. Relacionar, de forma automática, a extrema direita à
reação de quem só enxerga na barbárie a resposta para a violência é lavar as
mãos. Quem vive entre toque de recolher e "lei" paralela quer viver.
E quando o Estado só aparece de caveirão, a fantasia de redenção à base de
pólvora ganha aplauso.
A esquerda paga caro por ter abandonado o
tema. Segurança
pública não é pauta "do outro"; é obrigação de governo. Dá
para defender direitos e cobrar eficácia. Investigação independente, controle
externo das polícias, metas públicas de redução de homicídios, inteligência
para desarticular milícia, ocupação social de território, transparência e
auditoria de operação não são palavrões, são o mínimo. O que não dá é seguir no
ciclo: megaoperação, mortos, coletiva, silêncio, reprise.
Então, à pergunta do título: não, nem todo apoio à chacina é de extrema direita. Parte é medo antigo, dor acumulada e certeza de abandono. Dito isso, nomear o que aconteceu é inegociável. Foi chacina. E quem governa precisa escolher entre o show de horrores que rende manchete e a política que dá trabalho. Enquanto a gente continuar discutindo etiqueta ideológica, a fila de corpos continuará avançando e a única coisa realmente "limpa" será a consciência de quem nunca precisou escolher entre obedecer ao fuzil do crime ou ao fuzil do Estado.

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