O Brasil, mais que qualquer outro país da América Latina, chega à metade da primeira década do século XXI, em compromisso com seu passado. Pode ser considerado o local por excelência da "revolução passiva". Ou seja, uma "revolução sem revolução", conceito gramsciano para designar as mudanças "por cima". O ponto de partida para o estudo desse conceito é o trabalho de Vincenzo Cuoco que o empregou para caracterizar o primeiro período da revolução napolitana de 1799 (Risorgimento italiano), modificando-o e desenvolvendo-o a ponto de transmutar sua estrutura e natureza. É sob vários aspectos, um dos mais ricos e complexos do pensamento do filósofo e militante italiano. Seu vínculo e conexão com outros conceitos (guerra de posição, americanismo, bloco histórico, hegemonia, fordismo, estado ampliado e outros) são múltiplos e determinantes, de modo que ele passou a servir como critério de interpretação para pensar qualquer época de transformações históricas.
Graças as diferentes rearticulações com as interpretações gramscianas, resulta que nas análises da nossa formação, pode-se descobrir os elementos da revolução passiva dos grupos dominantes na elaboração de seu programa para conceber uma nação para o seu Estado. De outro lado, as grandes maiorias que vem surgindo com o processo de conquista de direitos e da cidadania ainda idealizou o seu Estado. Sua existência vem ocorrendo mais no plano societário que se realiza com rupturas moleculares. A política e apenas ela permite seu acesso ao Estado. E a palavra chave é a democracia como critério de interpretação da esquerda sobre a sua forma de inclusão, para que se transforme no sustentáculo de um transformismo ativo em que se encontre o social – igualdade – com a política – a democracia, a liberdade.
Aos fundadores do nosso Estado-Nação importava adotar uma institucionalidade liberal. Esta se devia dobrar a realidade, uma vez que se mostrava incompatível com uma sociedade inarticulada e inorgânica. A forma liberal do Estado não podia ser criada em conformidade com o caráter da sua sociedade civil, mas devia concentrar em si, ao mesmo tempo, que projetava para o futuro, aquilo em que a sociedade deveria converter-se.
Esse pragmatismo da nossa cultura política se apresenta como a compensação necessária à sua natureza autoritária, uma vez que os fins sociais se constituem como um segredo da razão de Estado, que, ora é revelado para a sociedade e ora lhe é ocultado, encoberto. Como algo que é criado numa instância distante dela e que não se sente obrigada a consultar suas preferências.
Essa é a explicação de fundo para a continuidade dessa cultura política no processo que, após 1930, deflagra a modernização econômica e nos traz a primazia da indústria e do industrialismo, mas, também, um momento de triunfo da razão de Estado em busca dos fins civilizatórios e da preservação dos meios coercitivos de controle social e produção de uma determinada ordenação societária.
Esse autoritarismo não poderia ser diferente na questão da organização do sistema eleitoral e partidário. As discussões, controvérsias e a evolução da legislação, em diversos momentos de recomposição das forças políticas, comprovam as origens dessa "dialética sem síntese". Vejamos sua evolução: o Código Eleitoral de 1932 (Decreto nº 21.076 de 24.02.1932) - baseado na obra de Joaquim Francisco de Assis Brasil, Democracia Representativa: do Voto e do Modo de Votar, Rio, Imprensa Nacional, 1931 cria as seguintes normas:
(a) estabelecimento de tribunais (Supremo Tribunal Eleitoral e tribunais regionais); (b) voto obrigatório, adulto e universal (inclusive feminino), secreto e alfabetizado; (c) adoção do princípio majoritário na eleição do presidente, dos governadores e dos senadores, e o princípio proporcional para a Câmara Federal e para as Assembléias Estaduais. O sistema idealizado por Assis Brasil e operacionalizado em 1932 era ainda caracteristicamente "pré-partidário", abrigando disposições extremamente frouxas nesta matéria. Assim, se admitia partidos estaduais, uni-estaduais e candidatos avulsos, sem filiação partidária.
Mais adiante o Código Eleitoral de 1945 (Decreto nº 7.586 de 25.05.1945) - a chamada "Lei Agamenon" institui - uma comissão para elaborar o novo Código.São seus membros: José Linhares, (Presidente); Vicente Piragibe, Lafayette Andrada, Miranda Valverde e Hahneman Guimarães:
A Comissão partiu dos princípios gerais e reproduzia os procedimentos do Código de 1932 - exceto no tocante à organização partidária, acrescentando-lhes dispositivos e inovações agrupados em quatro categorias gerais.
Primeiro lugar, sobre o registro de Partido: entendia-se que os partidos deveriam apresentar assinaturas de 10.000 (dez mil) eleitores distribuídos entre pelo menos 5 (cinco) estados, nenhum estado com menos 500 (quinhentas) assinaturas, a fim de obterem o competente registro.(Art.109 da Lei eleitoral). Em 1946 Dutra o aumentou para 50.000 (cinqüenta mil)- decreto-lei nº. 8.063, maio de 1946.
O artigo 114 do Código Eleitoral estabelecia que o Tribunal Superior Eleitoral poderia negar registro a quaisquer partidos que fossem contrários aos princípios democráticos e aos direitos fundamentais do homem, definidos na Constituição. De trinta e um com registro provisório, quinze foram cancelados. As razões foram bastante variáveis. Só uma vez o artigo foi utilizado de forma ideológica contra o PCB. O decreto de Dutra que aumentou o número de assinaturas permitia, também, pelo artigo 26 o cancelamento de registro de partido que recebesse orientação política ou contribuição em dinheiro do exterior.
Em segundo lugar, quanto ao registro de candidatos determinava que somente poderiam concorrer candidatos registrados pelos partidos ou alianças de partidos.
Um candidato poderia concorrer por mais de um partido para os cargos regidos pelo princípio majoritário, mas só por um partido ou coligação partidária para os cargos regidos pelos princípios proporcionais (artigos 39 a 42). Um candidato poderia concorrer simultaneamente para presidente, senador e deputado estadual num mesmo estado ou em mais de um Estado.
Em terceiro lugar, sobre o item da representação era retida na legislação eleitoral de 1945, a dualidade de princípios, majoritário para os cargos executivos e para o Senado, e proporcional para Câmara dos Deputados e para os legislativos estaduais. Na representação proporcional o quociente eleitoral seria determinado pela divisão do número de votos válidos, mais votos em branco, pelo número de cadeiras a ser preenchido. A representação de cada partido seria obtida dividindo-se a votação partidária pelo quociente eleitoral. Os lugares não preenchidos por esse critério seriam dados ao partido que obtivesse o maior número de votos na eleição em vez dos candidatos, individualmente, mais votados, como previa o Código de 1932.
Em quarto lugar, quanto ao alistamento eleitoral e face à precariedade dos recursos disponíveis e à lentidão do alistamento eleitoral, foi permitido o registro de blocos de eleitores com base em listas preparadas por empregadores e agências do governo: chamado de alistamento ex-officio. Esse sistema foi extinto com o Código Eleitoral de 24/07/1950, quando passou a ser exigido o alistamento individual.
O movimento político-militar de 1964, orientado para interromper o longo ciclo Vargas, se colocou em linha de continuidade com o que fora o objetivo de sua intervenção, isto é, 1964 confirma 1937 pelo seu aspecto coercitivo de suas instituições e pelo controle social sobre o conjunto da sociedade: modernização "por cima".
Foi com a alteração da Constituição de 1946 que o regime militar fundou os princípios ainda em vigor. A Emenda Constitucional n. º 14, de 03/06/1965 criou o Domicílio Eleitoral. Determinou que para ser candidato ao cargo de governador e vice-governador teria à data da eleição, pelo menos, quatro anos de domicílio eleitoral no Estado. Para os cargos de Prefeito e Vice-Prefeito o prazo era menor: pelos menos, dois anos de domicílio eleitoral no Município.
Para Câmara dos Deputados e Senado Federal e Assembléias Legislativas o candidato tinha que ter, pelo menos, quatro anos de domicílio eleitoral no Estado.
Mais adiante, a Junta Militar, em 1969, modificou a própria Constituição do regime de 1964 e criou novos mecanismos de controle. Com a Emenda Constitucional nº 1 de 17/10/1969 determinou que a Lei Complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos, visando a preservar: a moralidade para o exercício do mandato, a obrigatoriedade de domicílio eleitoral no Estado ou no município por prazo entre um e dois anos, fixado conforme a natureza do mandato ou função. Determinou que a organização, o funcionamento e a extinção dos partidos políticos seriam regulados por Lei Federal, observados os seguintes princípios: exigência de cinco por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo menos, em sete Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um deles e a proibição de coligações partidárias. Também, fundava o principio da fidelidade partidária, quando decreta que perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito. A perda do mandato será decretada pela Justiça Eleitoral, mediante representação do partido, assegurado o direito de ampla defesa.
Não é por acaso que a atual discussão de reforma político partidária e eleitoral se orienta no sentido de interromper o curso da comunicação entre a democracia política e os processos de democratização social, iniciado com o fim do regime militar, com a concepção de racionalizar a participação política da sociedade civil. E, nesse caso, permanece como continuidade da "Era Vargas" e da "Era Militar": administrar "por cima", seletivamente, o ingresso à cidadania, em uma democracia política entregue à "razão sensata dos ilustrados". O lamentável é que essa idéia é compartilhada, também, pelo iluminismo democrático e no campo da esquerda.
Concluindo, não seria muito relembrar que Gramsci sublinhava o perigo de transformar a "revolução passiva", “revolução sem revolução”, as mudanças “por cima” em programa, porque a maneira dos atores representar o papel geral do problema, pode levar a um fatalismo que exclua a ampliação da democracia política dos modernos, ou seja, o Estado ampliado, democrático e, conseqüentemente, a manutenção da separação do “bom senso” e do “senso comum”.
1 Artigo publicado na revista Política Democrática nº 13 /2005
(*) Gilvan Cavalcanti de Melo, pernambucano, 70 anos, membro do Diretório Nacional do PPS.
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