Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Evoquei, há um par de semanas, a sugestão de análises de Philip Converse sobre as dificuldades trazidas à realização do ideal de representação pela assimetria na capacidade de diferentes categorias socioeconômicas de transmitir "sinais" claros aos seus representantes, em contraste com meros "ruídos": as "bases" socioeconomicamente menos favorecidas, sendo menos informadas politicamente e menos envolvidas com a política, se veriam parcialmente excluídas da representação.
Essa sugestão se integra num amplo conjunto de velhas observações e teorias em que se relacionam a estratificação social e suas implicações intelectuais, de um lado, e a atuação política, de outro. Há a conhecida proposição do marxismo no sentido de que, justamente pela hegemonia intelectual e ideológica das classes dominantes, a transformação revolucionária dependeria do acesso à "consciência de classe" pelos proletários, que depende de problemáticas "condições objetivas". Clássicos das ciências sociais modernas, com destaque para trabalhos do próprio Converse, bem como pesquisas sobre questões correlatas executadas mesmo no Brasil, poderiam ter suas conclusões postas em termos afins às análises marxistas e com ressonâncias algo irônicas: a capacidade de dar tradução política aos interesses de classe - se se quiser, a "consciência de classe" - seria maior entre os de posição social mais elevada, onde estariam aqueles que Converse descreve como caracterizados por maior "estruturação ideológica" e por serem politicamente mais atentos e refinados.
O tema tem ramificações relevantes para a questão dos partidos e da ligação dos eleitores com eles, ou da "identificação partidária". Tenho mencionado às vezes o ideal de uma democracia na qual cidadãos sofisticadamente informados sobre os problemas de natureza variada que ganhassem relevância política tomariam posição diante dos diferentes problemas e optariam por um partido ou outro em função da correspondência entre suas posições pessoais e as posições dos partidos sobre os mesmos problemas. É provavelmente certo que se poderá fazer melhor democracia se se contar com cidadãos ou eleitores em geral intelectualmente sofisticados.
Embora a ideia de "identificação partidária" seja despojada de algo de sua força nesse quadro hipotético de eleitores que ponderam judiciosamente questões diversas, o partido poderia, naturalmente, surgir aí como o rótulo sintético para um conjunto de posições com respeito a elas, ou um "programa", como em certa concepção corrente e idealizada de "política ideológica".
Mas a indagação é a de como avançar politicamente em condições em que a maioria dos eleitores - talvez mesmo a grande maioria, como na desigualdade brasileira - carece de sofisticação intelectual em geral e, portanto, também de sofisticação política. Algumas análises sugerem que mesmo a estabilidade das atitudes envolvidas na identificação com um partido ou outro mostraria relação positiva com a sofisticação intelectual (aumentando com o aumento da sofisticação), já que tais atitudes teriam, no caso de gente sofisticada, o suporte trazido pela teia de diferentes aspectos apreendidos cognitivamente. Mas isso fica aquém do tamanho do desafio: não se trata apenas de que o eleitor, mesmo o eleitor sofisticado, "economize informação" por meio da referência ao partido, mas antes de que se possa economizar sofisticação no processo de construção institucional relativamente aos partidos. O que o desafio envolve pode ser assinalado em alguns pontos.
Primeiro, o de que os partidos são mais necessários no quadro de deficiências materiais e intelectuais, como instrumentos para criar "identidades" político-institucionais e canalizar e dar consistência à participação político-eleitoral, eventualmente neutralizando a disponibilidade do eleitorado popular para manipulações propriamente personalistas e fraudulentamente populistas - o que não exclui, naturalmente, em particular nas condições deficientes supostas, o papel importante de lideranças pessoais e talvez "carismáticas" no processo geral. Nessas condições, de todo modo, não há como evitar que a identificação partidária se faça com base em fatores que surgem como espúrios na perspectiva exigente do ideal do eleitor sofisticado e informado: imagens mais ou menos toscas, "projeções" baseadas em informações precárias ou errôneas e percepções simples ou mesmo simplórias etc. Seja como for, os diversos componentes em si mesmo pouco atraentes dessa dinâmica remetem a um rescaldo positivo que a história variada da democracia moderna tem corroborado: o de que partidos capazes de assim canalizar estavelmente a participação popular acabam resultando - aos trancos e barrancos, em alguma medida - em instrumentos importantes de políticas redistributivas e igualitárias, através das quais tradições de elitismo e desigualdade foram superadas.
Pesquisas sobre identificação partidária no Brasil têm mostrado uma minoria de ao redor de 35% dos eleitores que se identificam com um partido ou outro, dentre os quais a maior parcela (incluindo proporção apreciável de gente sofisticada e politicamente atenta) se identifica recentemente com o PT. A grande pergunta a respeito da eventual consolidação de um sistema partidário em nosso caso é a de se e quando virá a produzir-se a identificação partidária estável na massa dos eleitores menos envolvidos politicamente (ou seja, os cerca de 65% restantes), independentemente do caráter menos ou mais sofisticado ou "ideológico" dessa identificação.
Uma condição crucial para isso seria a estabilidade da "oferta" partidária, que tem sido comprometida nas turbulências da história política do país e que o enfrentamento PT-PSDB parecia há pouco prometer superar. É difícil pretender que a promessa ainda se reitere.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Evoquei, há um par de semanas, a sugestão de análises de Philip Converse sobre as dificuldades trazidas à realização do ideal de representação pela assimetria na capacidade de diferentes categorias socioeconômicas de transmitir "sinais" claros aos seus representantes, em contraste com meros "ruídos": as "bases" socioeconomicamente menos favorecidas, sendo menos informadas politicamente e menos envolvidas com a política, se veriam parcialmente excluídas da representação.
Essa sugestão se integra num amplo conjunto de velhas observações e teorias em que se relacionam a estratificação social e suas implicações intelectuais, de um lado, e a atuação política, de outro. Há a conhecida proposição do marxismo no sentido de que, justamente pela hegemonia intelectual e ideológica das classes dominantes, a transformação revolucionária dependeria do acesso à "consciência de classe" pelos proletários, que depende de problemáticas "condições objetivas". Clássicos das ciências sociais modernas, com destaque para trabalhos do próprio Converse, bem como pesquisas sobre questões correlatas executadas mesmo no Brasil, poderiam ter suas conclusões postas em termos afins às análises marxistas e com ressonâncias algo irônicas: a capacidade de dar tradução política aos interesses de classe - se se quiser, a "consciência de classe" - seria maior entre os de posição social mais elevada, onde estariam aqueles que Converse descreve como caracterizados por maior "estruturação ideológica" e por serem politicamente mais atentos e refinados.
O tema tem ramificações relevantes para a questão dos partidos e da ligação dos eleitores com eles, ou da "identificação partidária". Tenho mencionado às vezes o ideal de uma democracia na qual cidadãos sofisticadamente informados sobre os problemas de natureza variada que ganhassem relevância política tomariam posição diante dos diferentes problemas e optariam por um partido ou outro em função da correspondência entre suas posições pessoais e as posições dos partidos sobre os mesmos problemas. É provavelmente certo que se poderá fazer melhor democracia se se contar com cidadãos ou eleitores em geral intelectualmente sofisticados.
Embora a ideia de "identificação partidária" seja despojada de algo de sua força nesse quadro hipotético de eleitores que ponderam judiciosamente questões diversas, o partido poderia, naturalmente, surgir aí como o rótulo sintético para um conjunto de posições com respeito a elas, ou um "programa", como em certa concepção corrente e idealizada de "política ideológica".
Mas a indagação é a de como avançar politicamente em condições em que a maioria dos eleitores - talvez mesmo a grande maioria, como na desigualdade brasileira - carece de sofisticação intelectual em geral e, portanto, também de sofisticação política. Algumas análises sugerem que mesmo a estabilidade das atitudes envolvidas na identificação com um partido ou outro mostraria relação positiva com a sofisticação intelectual (aumentando com o aumento da sofisticação), já que tais atitudes teriam, no caso de gente sofisticada, o suporte trazido pela teia de diferentes aspectos apreendidos cognitivamente. Mas isso fica aquém do tamanho do desafio: não se trata apenas de que o eleitor, mesmo o eleitor sofisticado, "economize informação" por meio da referência ao partido, mas antes de que se possa economizar sofisticação no processo de construção institucional relativamente aos partidos. O que o desafio envolve pode ser assinalado em alguns pontos.
Primeiro, o de que os partidos são mais necessários no quadro de deficiências materiais e intelectuais, como instrumentos para criar "identidades" político-institucionais e canalizar e dar consistência à participação político-eleitoral, eventualmente neutralizando a disponibilidade do eleitorado popular para manipulações propriamente personalistas e fraudulentamente populistas - o que não exclui, naturalmente, em particular nas condições deficientes supostas, o papel importante de lideranças pessoais e talvez "carismáticas" no processo geral. Nessas condições, de todo modo, não há como evitar que a identificação partidária se faça com base em fatores que surgem como espúrios na perspectiva exigente do ideal do eleitor sofisticado e informado: imagens mais ou menos toscas, "projeções" baseadas em informações precárias ou errôneas e percepções simples ou mesmo simplórias etc. Seja como for, os diversos componentes em si mesmo pouco atraentes dessa dinâmica remetem a um rescaldo positivo que a história variada da democracia moderna tem corroborado: o de que partidos capazes de assim canalizar estavelmente a participação popular acabam resultando - aos trancos e barrancos, em alguma medida - em instrumentos importantes de políticas redistributivas e igualitárias, através das quais tradições de elitismo e desigualdade foram superadas.
Pesquisas sobre identificação partidária no Brasil têm mostrado uma minoria de ao redor de 35% dos eleitores que se identificam com um partido ou outro, dentre os quais a maior parcela (incluindo proporção apreciável de gente sofisticada e politicamente atenta) se identifica recentemente com o PT. A grande pergunta a respeito da eventual consolidação de um sistema partidário em nosso caso é a de se e quando virá a produzir-se a identificação partidária estável na massa dos eleitores menos envolvidos politicamente (ou seja, os cerca de 65% restantes), independentemente do caráter menos ou mais sofisticado ou "ideológico" dessa identificação.
Uma condição crucial para isso seria a estabilidade da "oferta" partidária, que tem sido comprometida nas turbulências da história política do país e que o enfrentamento PT-PSDB parecia há pouco prometer superar. É difícil pretender que a promessa ainda se reitere.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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