José Eli da Veiga
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O documento lançado pela cúpula do G-20 no histórico encontro londrino de 2 de abril contém afirmações que poderiam ser consideradas bem auspiciosas. Principalmente nos três últimos parágrafos, que destoam de todo o restante, além de não constarem de nenhum dos quatro relatórios finais dos grupos de trabalho que prepararam o evento.
Quatro das mais relevantes estão no 27º, no qual os 20 líderes anunciam: a) que pretendem fazer de tudo para que os investimentos bancados por programas de estímulo fiscal gerem uma recuperação resiliente, sustentável e verde; b) que farão a transição para tecnologias e infraestruturas que sejam limpas, inovadoras, eficientes no uso dos recursos naturais e de baixo carbono; c) que encorajam os bancos multilaterais de desenvolvimento a contribuírem de forma decisiva para que esse objetivo seja atingido; d) e que identificarão e trabalharão juntos em outras iniciativas que construam economias sustentáveis.
No parágrafo seguinte, comprometem-se em chegar a um acordo na conferência de Copenhague, de dezembro de 2009, que cuide da ameaça de irreversível mudança climática com base no princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. E no último anunciam que a próxima cúpula será antes do fim do ano.
Outras pérolas também podem ser pinçadas nos primeiros 26 parágrafos. Como a repetida necessidade de se promover "atividades econômicas sustentáveis", de "construir uma recuperação inclusiva, verde e sustentável", ou de "acelerar a transição a uma economia verde". Com destaque especial para a solene declaração inicial de que o crescimento "não deve refletir apenas os interesses da população atual, mas também o das futuras gerações".
Todavia, tudo isso mais parece chique maquiagem de um conteúdo que não poderia ser mais vulgar. Pois o comunicado insiste em fazer crer que a atual crise só ocorreu porque vários governos de países centrais cometeram a imprudência de deixar que suas esferas financeiras galopassem com rédeas soltas. Ou seja, nada teria ocorrido de grave com o precedente crescimento das atividades econômicas não-financeiras. Estas, coitadas, agora seriam apenas trágicas vítimas de uma dinâmica bancária autônoma, que contou com o beneplácito de autoridades irresponsáveis.
Para perceber que essa interpretação da crise é pura estória da carochinha, basta que se leia os artigos semanais no Financial Times do convencional Martin Wolf, sempre traduzidos nesta página do Valor. Enfatizam os colossais excedentes de oferta dos países superavitários, dos quais China, Alemanha e Japão são os mais importantes, com seus respectivos excedentes em conta corrente de US$ 372 bilhões, US$ 253 bilhões e US$ 211 bilhões em 2007. Aí está a base material das patuscadas bancárias, e ela não será contornada pelo cumprimento do comunicado do G-20, que tem o surrealista título de "Plano Global para Recuperação e Reforma".
Mais do que chamar a atenção para a base real dos desmandos financeiros, a ênfase de Wolf só reforça duas hipóteses que ele certamente desdenha por jogarem areia demais em seu circunspeto caminhão. A primeira é a da atual crise como episódio sinalizador de uma complexa mudança global, com apenas três precedentes históricos. Os do começo do Século XVII, do final do XVIII e do início do XX, que marcaram as ascensões da Holanda, da Grã-Bretanha e dos EUA. Desde o final do século passado fica cada vez mais clara a indomável ressurreição da China, cujos vínculos econômicos com os EUA repetem o padrão das três anteriores grandes mudanças capitalistas. Que os EUA tiveram com a Grã-Bretanha até o início do Século XX, que esta manteve com a Holanda até o final do XVIII, e que Amsterdam se entreteve com os genoveses até o começo do XVII.
A segunda hipótese está ainda mais distante dos horizontes mentais de qualquer analista do Financial Times. É possível que, ao longo dessa quarta grande mudança do capitalismo mundial, a macroeconomia dos países centrais venha a ser cada vez menos centrada no ininterrupto aumento do consumo de suas populações, favorecendo simultaneamente a decolagem de mais de uma centena de economias periféricas. Em outras palavras, que ocorra significativa redistribuição geopolítica da oferta e da demanda globais, conforme os países mais avançados busquem os caminhos de uma planejada prosperidade sem crescimento, única saída para que suas economias possam vir a ser ambientalmente sustentáveis.
Essas duas hipóteses - que estão se tornando cada vez mais plausíveis - ajudam a entender tanto a importância do G-20 para a imprescindível governança mundial, como as incongruências dos 29 parágrafos que sua cúpula se dispôs a adotar na falta de um verdadeiro plano. Medidas de reforma do sistema financeiro e perorações contra o protecionismo combinam muito mais com os atuais presidentes e primeiros ministros das 19 nações do que a perspectiva de enfrentamento dos dois maiores desafios deste século: mitigação do aquecimento global e reestruturação da geopolítica mundial engendrada pela ressurreição da China.
Explanação detalhada da primeira hipótese pode ser encontrada na fascinante obra de Giovanni Arrighi "O Longo Século XX; Dinheiro, Poder e as Origens de Nosso Tempo" (Contraponto/Unesp, 1996). Como a pesquisa que gerou esse livro foi feita nas décadas de 1970 e 1980, o início do deslocamento da acumulação para o eixo asiático levou o autor ao erro de dar mais importância ao Japão do que à China. Mas isso em nada diminui a riqueza analítica que precede as últimas páginas.
Já os detalhes sobre a segunda hipótese foram sistematizados em "Prosperity Without Growth? The Transition to a Sustainable Economy", relatório que o professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, elaborou para a Sustainable Development Commission, "watchdog" criado pelo governo britânico para ajudá-lo na formulação de uma estratégia de desenvolvimento sustentável. (http:// www.sd-commission.org.uk/publications.php?id=914 )
José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA-USP e autor de diversos livros sobre desenvolvimento sustentável, escreve mensalmente às terças.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O documento lançado pela cúpula do G-20 no histórico encontro londrino de 2 de abril contém afirmações que poderiam ser consideradas bem auspiciosas. Principalmente nos três últimos parágrafos, que destoam de todo o restante, além de não constarem de nenhum dos quatro relatórios finais dos grupos de trabalho que prepararam o evento.
Quatro das mais relevantes estão no 27º, no qual os 20 líderes anunciam: a) que pretendem fazer de tudo para que os investimentos bancados por programas de estímulo fiscal gerem uma recuperação resiliente, sustentável e verde; b) que farão a transição para tecnologias e infraestruturas que sejam limpas, inovadoras, eficientes no uso dos recursos naturais e de baixo carbono; c) que encorajam os bancos multilaterais de desenvolvimento a contribuírem de forma decisiva para que esse objetivo seja atingido; d) e que identificarão e trabalharão juntos em outras iniciativas que construam economias sustentáveis.
No parágrafo seguinte, comprometem-se em chegar a um acordo na conferência de Copenhague, de dezembro de 2009, que cuide da ameaça de irreversível mudança climática com base no princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. E no último anunciam que a próxima cúpula será antes do fim do ano.
Outras pérolas também podem ser pinçadas nos primeiros 26 parágrafos. Como a repetida necessidade de se promover "atividades econômicas sustentáveis", de "construir uma recuperação inclusiva, verde e sustentável", ou de "acelerar a transição a uma economia verde". Com destaque especial para a solene declaração inicial de que o crescimento "não deve refletir apenas os interesses da população atual, mas também o das futuras gerações".
Todavia, tudo isso mais parece chique maquiagem de um conteúdo que não poderia ser mais vulgar. Pois o comunicado insiste em fazer crer que a atual crise só ocorreu porque vários governos de países centrais cometeram a imprudência de deixar que suas esferas financeiras galopassem com rédeas soltas. Ou seja, nada teria ocorrido de grave com o precedente crescimento das atividades econômicas não-financeiras. Estas, coitadas, agora seriam apenas trágicas vítimas de uma dinâmica bancária autônoma, que contou com o beneplácito de autoridades irresponsáveis.
Para perceber que essa interpretação da crise é pura estória da carochinha, basta que se leia os artigos semanais no Financial Times do convencional Martin Wolf, sempre traduzidos nesta página do Valor. Enfatizam os colossais excedentes de oferta dos países superavitários, dos quais China, Alemanha e Japão são os mais importantes, com seus respectivos excedentes em conta corrente de US$ 372 bilhões, US$ 253 bilhões e US$ 211 bilhões em 2007. Aí está a base material das patuscadas bancárias, e ela não será contornada pelo cumprimento do comunicado do G-20, que tem o surrealista título de "Plano Global para Recuperação e Reforma".
Mais do que chamar a atenção para a base real dos desmandos financeiros, a ênfase de Wolf só reforça duas hipóteses que ele certamente desdenha por jogarem areia demais em seu circunspeto caminhão. A primeira é a da atual crise como episódio sinalizador de uma complexa mudança global, com apenas três precedentes históricos. Os do começo do Século XVII, do final do XVIII e do início do XX, que marcaram as ascensões da Holanda, da Grã-Bretanha e dos EUA. Desde o final do século passado fica cada vez mais clara a indomável ressurreição da China, cujos vínculos econômicos com os EUA repetem o padrão das três anteriores grandes mudanças capitalistas. Que os EUA tiveram com a Grã-Bretanha até o início do Século XX, que esta manteve com a Holanda até o final do XVIII, e que Amsterdam se entreteve com os genoveses até o começo do XVII.
A segunda hipótese está ainda mais distante dos horizontes mentais de qualquer analista do Financial Times. É possível que, ao longo dessa quarta grande mudança do capitalismo mundial, a macroeconomia dos países centrais venha a ser cada vez menos centrada no ininterrupto aumento do consumo de suas populações, favorecendo simultaneamente a decolagem de mais de uma centena de economias periféricas. Em outras palavras, que ocorra significativa redistribuição geopolítica da oferta e da demanda globais, conforme os países mais avançados busquem os caminhos de uma planejada prosperidade sem crescimento, única saída para que suas economias possam vir a ser ambientalmente sustentáveis.
Essas duas hipóteses - que estão se tornando cada vez mais plausíveis - ajudam a entender tanto a importância do G-20 para a imprescindível governança mundial, como as incongruências dos 29 parágrafos que sua cúpula se dispôs a adotar na falta de um verdadeiro plano. Medidas de reforma do sistema financeiro e perorações contra o protecionismo combinam muito mais com os atuais presidentes e primeiros ministros das 19 nações do que a perspectiva de enfrentamento dos dois maiores desafios deste século: mitigação do aquecimento global e reestruturação da geopolítica mundial engendrada pela ressurreição da China.
Explanação detalhada da primeira hipótese pode ser encontrada na fascinante obra de Giovanni Arrighi "O Longo Século XX; Dinheiro, Poder e as Origens de Nosso Tempo" (Contraponto/Unesp, 1996). Como a pesquisa que gerou esse livro foi feita nas décadas de 1970 e 1980, o início do deslocamento da acumulação para o eixo asiático levou o autor ao erro de dar mais importância ao Japão do que à China. Mas isso em nada diminui a riqueza analítica que precede as últimas páginas.
Já os detalhes sobre a segunda hipótese foram sistematizados em "Prosperity Without Growth? The Transition to a Sustainable Economy", relatório que o professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, elaborou para a Sustainable Development Commission, "watchdog" criado pelo governo britânico para ajudá-lo na formulação de uma estratégia de desenvolvimento sustentável. (http:// www.sd-commission.org.uk/publications.php?id=914 )
José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA-USP e autor de diversos livros sobre desenvolvimento sustentável, escreve mensalmente às terças.
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