Panorama Econômico :: Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO
Há 45 anos, os militares tomaram o poder e golpearam as instituições democráticas. Hoje, o Senado ofende o país, a Câmara dos Deputados acumula escândalos, o Supremo toma uma decisão que, se cumprida, liberará criminosos da prisão, o Executivo usa a estrutura do governo para campanha política. O que o Brasil está fazendo com a democracia dolorosamente conquistada?
Não aprendemos as lições dolorosas do passado? Se a ideia é provar aos 83 milhões de brasileiros que nasceram após o último general deixar a Presidência pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, que a democracia é cara, ineficiente e fonte de corrupção, as nossas autoridades estão no caminho certo.
Em declarações e atos nos últimos dias, os senadores levaram ao limite a paciência dos contribuintes: “todos aqui sabem como a Casa funciona”, lembrou a senadora Roseana Sarney, numa reunião de líderes. Mas o país não sabia tudo isso. O Senado não existe para ser essa coleção de privilégios, irregularidades e vergonhas aceitas como normais. Era para ser uma instituição madura, revisora das decisões da Câmara dos Deputados, representante, em equilíbrio paritário, dos estados da Federação.
O país já sabia que o Senado não funcionava exatamente como nos livros escolares.
O país poderia até intuir nomeações de parentes, funcionários fantasmas, gastos excessivos, mas não tudo isso que está vendo nos últimos dias. Um clube com uma coleção de absurdos tão excessivos que pode levar os jovens brasileiros — os que não viram o peso do Congresso Nacional fechado — a se perguntarem: para que a instituição existe? Se a pergunta for feita, o risco é de que as respostas sejam que o Senado existe para que a casta dos senadores possa usar, como quiser, o dinheiro público, para que o exdiretorgeral Agaciel Maia tenha bens acima de suas posses e nem os declare, e que, em troca, permita a farra das contratações que levou a Casa a ter o exorbitante número de 10 mil funcionários, com direito a hora extra no descanso.
E que existe também para que os senadores nomeiem para a presidência da poderosa Comissão Mista do Orçamento o “Almeidinha”, aquele cuja qualificação foi ter sido o fiel escudeiro do senador Renan Calheiros, que usava uma empreiteira para pagar a amante.
Na Câmara dos Deputados, a cumplicidade dos pares em torno de irregularidades e desvios que já chocaram o país em várias ocasiões. Dos anões do Orçamento para cá foram tantos, que o país até já perdeu a conta.
O Executivo está em plena campanha política. No dia 18 de fevereiro, só para citar um evento, o Palácio do Planalto foi sede de uma reunião do Conselho Político sobre as chances da candidata declarada do presidente Lula à sucessão, quando se tomou a decisão que ela continuaria a “inaugurar” obras. Nem se dão ao trabalho de fazer a reunião fora do expediente, em outro local. Será assim nos próximos dois anos: o governo será usado para a campanha presidencial, com as explicações de sempre de que a gerente precisa acompanhar as obras. É o álibi pré-moldado.
Álibi que será usado pelos outros candidatos que exerçam cargo público.
Depois, bastará a Justiça Eleitoral punir um ou outro governador para dar a impressão de que está vigilante. A Justiça Eleitoral tem que prevenir, estabelecendo os princípios agora, para todos os governos, para todos os candidatos.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que enquanto o réu puder recorrer, ele o fará em liberdade. A regra já valia para alguns privilegiados.
O assassino confesso Antônio Pimenta Neves, condenado em dois julgamentos, permanece solto.
Todas as evidências e até as confissões não valem, porque, na dúvida, a decisão é “a favor do réu”.
Bernard Madoff cometeu apenas um erro: não nasceu no Brasil. O ex-presidente da Nasdaq é autor da maior fraude financeira de que se tem notícia. Ficou em prisão domiciliar, confessou o crime e foi levado para a prisão, aonde vai esperar o julgamento. E, quando for condenado, ele poderá recorrer. Porém, o fará da prisão.
Se Madoff estivesse no Brasil, ele poderia pedir habeas corpus com grande chance de ser beneficiado por uma daquelas decisões idiossincráticas de que ele não ofereceria risco de fuga, ou o FBI teria se excedido na investigação, ou qualquer um dos argumentos que aparecem em algumas liminares, apenas para os notáveis.
O princípio do in dubio pro reo é do Direito universal, mas sua interpretação, aqui, criou uma esquisitice: antes do julgamento, dependendo do suspeito, ele pode ficar preso em diversas circunstâncias; depois do julgamento é que a dúvida se estabelece e, aí, o réu poderá recorrer em liberdade, até se esgotar o último recurso.
Quarenta e cinco anos depois de iniciado o segundo período ditatorial da República, o que se passa na cabeça dos donos dos poderes republicanos? Há uma desconfortável sensação de que eles não veem o perigo extremo que o país corre. Não de outro golpe militar, a história não se repetirá assim.
O risco maior é de os jovens — os donos do futuro — acharem que a democracia não vale o que custa.
Afinal, 44% dos brasileiros nasceram depois do fim da ditadura militar.
Mais de 100 milhões de brasileiros nasceram depois do fim do AI-5. Já são a maioria. Eles nada viram; podem não notar as virtudes que nós, os mais velhos, valorizamos na democracia.
DEU EM O GLOBO
Há 45 anos, os militares tomaram o poder e golpearam as instituições democráticas. Hoje, o Senado ofende o país, a Câmara dos Deputados acumula escândalos, o Supremo toma uma decisão que, se cumprida, liberará criminosos da prisão, o Executivo usa a estrutura do governo para campanha política. O que o Brasil está fazendo com a democracia dolorosamente conquistada?
Não aprendemos as lições dolorosas do passado? Se a ideia é provar aos 83 milhões de brasileiros que nasceram após o último general deixar a Presidência pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, que a democracia é cara, ineficiente e fonte de corrupção, as nossas autoridades estão no caminho certo.
Em declarações e atos nos últimos dias, os senadores levaram ao limite a paciência dos contribuintes: “todos aqui sabem como a Casa funciona”, lembrou a senadora Roseana Sarney, numa reunião de líderes. Mas o país não sabia tudo isso. O Senado não existe para ser essa coleção de privilégios, irregularidades e vergonhas aceitas como normais. Era para ser uma instituição madura, revisora das decisões da Câmara dos Deputados, representante, em equilíbrio paritário, dos estados da Federação.
O país já sabia que o Senado não funcionava exatamente como nos livros escolares.
O país poderia até intuir nomeações de parentes, funcionários fantasmas, gastos excessivos, mas não tudo isso que está vendo nos últimos dias. Um clube com uma coleção de absurdos tão excessivos que pode levar os jovens brasileiros — os que não viram o peso do Congresso Nacional fechado — a se perguntarem: para que a instituição existe? Se a pergunta for feita, o risco é de que as respostas sejam que o Senado existe para que a casta dos senadores possa usar, como quiser, o dinheiro público, para que o exdiretorgeral Agaciel Maia tenha bens acima de suas posses e nem os declare, e que, em troca, permita a farra das contratações que levou a Casa a ter o exorbitante número de 10 mil funcionários, com direito a hora extra no descanso.
E que existe também para que os senadores nomeiem para a presidência da poderosa Comissão Mista do Orçamento o “Almeidinha”, aquele cuja qualificação foi ter sido o fiel escudeiro do senador Renan Calheiros, que usava uma empreiteira para pagar a amante.
Na Câmara dos Deputados, a cumplicidade dos pares em torno de irregularidades e desvios que já chocaram o país em várias ocasiões. Dos anões do Orçamento para cá foram tantos, que o país até já perdeu a conta.
O Executivo está em plena campanha política. No dia 18 de fevereiro, só para citar um evento, o Palácio do Planalto foi sede de uma reunião do Conselho Político sobre as chances da candidata declarada do presidente Lula à sucessão, quando se tomou a decisão que ela continuaria a “inaugurar” obras. Nem se dão ao trabalho de fazer a reunião fora do expediente, em outro local. Será assim nos próximos dois anos: o governo será usado para a campanha presidencial, com as explicações de sempre de que a gerente precisa acompanhar as obras. É o álibi pré-moldado.
Álibi que será usado pelos outros candidatos que exerçam cargo público.
Depois, bastará a Justiça Eleitoral punir um ou outro governador para dar a impressão de que está vigilante. A Justiça Eleitoral tem que prevenir, estabelecendo os princípios agora, para todos os governos, para todos os candidatos.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que enquanto o réu puder recorrer, ele o fará em liberdade. A regra já valia para alguns privilegiados.
O assassino confesso Antônio Pimenta Neves, condenado em dois julgamentos, permanece solto.
Todas as evidências e até as confissões não valem, porque, na dúvida, a decisão é “a favor do réu”.
Bernard Madoff cometeu apenas um erro: não nasceu no Brasil. O ex-presidente da Nasdaq é autor da maior fraude financeira de que se tem notícia. Ficou em prisão domiciliar, confessou o crime e foi levado para a prisão, aonde vai esperar o julgamento. E, quando for condenado, ele poderá recorrer. Porém, o fará da prisão.
Se Madoff estivesse no Brasil, ele poderia pedir habeas corpus com grande chance de ser beneficiado por uma daquelas decisões idiossincráticas de que ele não ofereceria risco de fuga, ou o FBI teria se excedido na investigação, ou qualquer um dos argumentos que aparecem em algumas liminares, apenas para os notáveis.
O princípio do in dubio pro reo é do Direito universal, mas sua interpretação, aqui, criou uma esquisitice: antes do julgamento, dependendo do suspeito, ele pode ficar preso em diversas circunstâncias; depois do julgamento é que a dúvida se estabelece e, aí, o réu poderá recorrer em liberdade, até se esgotar o último recurso.
Quarenta e cinco anos depois de iniciado o segundo período ditatorial da República, o que se passa na cabeça dos donos dos poderes republicanos? Há uma desconfortável sensação de que eles não veem o perigo extremo que o país corre. Não de outro golpe militar, a história não se repetirá assim.
O risco maior é de os jovens — os donos do futuro — acharem que a democracia não vale o que custa.
Afinal, 44% dos brasileiros nasceram depois do fim da ditadura militar.
Mais de 100 milhões de brasileiros nasceram depois do fim do AI-5. Já são a maioria. Eles nada viram; podem não notar as virtudes que nós, os mais velhos, valorizamos na democracia.
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