Renato Lessa*
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO / ALIÁS
Recusada pelo presidente, a hipótese do terceiro mandato vaga pelo mundo da opinião e da política
Primeiro, ao que parece, nunca como antes na história deste país o capitalismo esteve tão consolidado. Há disso sinais eloquentes, todos inscritos no que há tempos designávamos como "a dimensão objetiva da vida social": o mundo da produção, das trocas e da economia política, em geral. Os termos do mundo do mercado estão, no entanto, inscritos, para além da chamada vida material, na configuração das expectativas dos cidadãos da República. O horizonte natural da "boa sociedade" parece não mais colidir com os assim chamados aspectos estruturais e com os valores daquela ordem. A demanda por inclusão, por exemplo, fixada nos semblantes e no vozerio de expressões políticas tidas como de maior radicalidade, está a indicar os contornos do horizonte de expectativas nos quais nos inserimos.
A semântica da inclusão opera na falha - ou na exaustão - da semântica da transformação. É mesmo de uma viragem político-existencial que se trata: a inclusão neste mundo dispensa o salto alucinatório na direção de outro mundo. Com efeito, a passagem entre as duas ordens semânticas, se vier, dependerá da operação mágica de uma megaalquimia: os efeitos mecânicos e de escala da inclusão acabarão por reconfigurar a forma e o sentido da experiência social, transformando-a, ao final. A hipótese traz consigo a tese de sabor fideísta e espontaneísta de que a democratização é antes propulsionada pelo volume material da incorporação do que por alguma direção político-cultural que venha a lhe conferir identidade política concreta. O tema, como sabemos, é vasto e aberto à imparável controvérsia, com implicações fortes para uma teoria da agência política e social.
Em segundo lugar, o cenário de consolidação capitalista, no entanto, é assaltado por uma curiosa assincronia: no âmbito econômico, os valores e as práticas do livre mercado; na esfera pública, valorização do Estado. É certo que os ventos da crise permitiram certa demonização retórica oficial dos efeitos deletérios de uma concepção de mundo que pensa a sociedade na ótica dos negócios. Mas, a despeito da conjuntura aziaga, a assincronia está posta desde 2003 (e mesmo desde antes). O interessante é que não se trata de uma oposição cujos polos estejam fixados respectivamente na sociedade e no Estado. É no núcleo mesmo da gestão do Estado que estão abrigados os que expressam, de forma tipificada, aquelas orientações díspares. Uma coalizão elástica e generosa incorpora um arco improvável que transita dos segmentos mais duros da direita social - os seres do agrobusiness e do mundo agrário, por exemplo - a hirsutas expressões do igualitarismo (um tanto desorientadas, é certo, pela linguagem do "reconhecimento"), nas hostes da esquerda.
Entre os antípodas desse arco, uma atualização prática de um mito brasileiro generoso: há lugar para todos. Mas, no lugar da harmonia e do "jogo cooperativo", a guerra de posições do interior do Estado. Nada de mobilização autônoma de forças sociais, o que implicaria a quebra do equilíbrio frágil daquilo que Luiz Werneck Vianna, em ensaio iluminado, identificou com a antiga imagem do "estado de compromisso". Se fosse outro o desenho, quanto mais os incluídos no arco reforçassem suas posições no âmbito da sociedade, mais difícil seria a administração política do governo.
Menos do que "Estado de Compromisso", parece-me ser o caso de uma "situação de compromisso" : uma forma de administrar o conflito político e social que depende do desempenho de seu principal operador pessoal. Estamos menos aqui na chave do pacto que deu origem ao consenso social europeu dos anos 50 e 60 e mais em um universo que exige as artes de um operador virtuoso.
Lula, ícone do presidencialismo de animação, veste bem a fatiota. Ninguém melhor do que ele se apresenta como protagonista de um mito de integração básica. Tem-se aqui o ator que estabelece as linhas de sutura - nunca de ruptura. Da assincronia entre economia e política passamos, pois, para a presença de um grande operador de sincronias, o presidente. É de se perguntar, a sustentabilidade do arranjo pode prescindir da presença física do seu operador?
O terceiro ponto: a pergunta precipita o diagnóstico geral sobre uma questão de conjuntura. O calendário eleitoral é uma das interpelações que o curto prazo impõe ao modo lulista de governar e a sua aparente imprescindibilidade na gestão sistêmica do país. Negada expressamente pelo presidente, a hipótese do terceiro mandato parece ainda assim errar, de algum modo, pelo mundo da opinião e da política, sem desaparecer inteiramente do horizonte e sem que inexistam dinâmicas propiciadoras, de ordem mais geral.
Mesmo como hipótese velada, o terceiro mandato poderá gerar efeitos imediatos. Não é absurdo imaginar benefícios para a oposição, em temporada de baixa qualificação política e cognitiva. Um governo não ultrapassável à direita não encontra na oposição conservadora reparos maiores, a não ser os de ocasião ou fundados em desvios - reais ou suspeitados - de conduta moral. A tese do terceiro mandato, se explicitamente posta, dará à oposição uma referência vertebradora. Dar-lhe-á ensejo a que abandone a guerrilha insincera do varejo e uma oportunidade para afirmações compungidas, e talvez não menos inautênticas, de apego à legalidade, com direito, por certo, a farto pugilato judiciário.
Desde o Golpe da Maioridade, em 1840, até os dias que correm, o País experimentou uma associação entre o enfrentamento de desafios macropolíticos, econômicos e sociais com o alongamento do calendário político, no sentido da maior durabilidade quer dos mandatos, quer dos arranjos que os sustentam. Da Maioridade resultou a plena instalação do Poder Moderador, e seu papel crucial para a consolidação do Estado Nacional. A viabilidade institucional da Primeira República resultou de um arranjo extralegal, estabelecido pelo presidente Campos Salles (1898-1902), que, a despeito da Constituição, eliminou do horizonte a possibilidade de vitória eleitoral das oposições. Os cenários de 1930, do Estado Novo e do experimento-64 têm todos como fulcro a perspectiva de congelamento e de extensão do ciclo político, em nome das transformações fundas na ordem social. Fernando Henrique Cardoso, por fim, submeteu o calendário político do País a seu diagnóstico que era imprescindível para a felicidade geral. Foi um dos pioneiros de recente prática sul-americana. Em todos esses momentos, dimensões sistêmicas fundamentais para o País estavam a ser tratadas.
Não parece ser trivial a associação entre a consolidação das dinâmicas básicas do mundo capitalista e a presença de mecanismos de minimização dos conflitos sociais "naturais". Lula, avesso à luta de classes, tem cumprido papel inestimável a tal respeito. Tal como nos momentos anteriormente mencionados, aqui estão a ser dados passos cruciais para a definição do que é e será o País. De tal cenário poderá resultar a alucinação da imprescindibilidade.
Viável ou não, em termos políticos e legais, o tema do terceiro mandato poderá vir a ser afetado, no entanto, pelo comportamento do principal personagem. Lula tem demonstrado aversão à hipótese. Apesar da ação de áulicos aflitos e gulosos, não há como apostar na insinceridade presidencial. Por certo, a política "è mobile", mas Lula, como um dos mais importantes personagens da história da República, sabe que sua bela biografia não terá acréscimo positivamente notável diante da mácula de haver modificado a Constituição, com finalidades idênticas às de seu antecessor.
*Professor titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Universidade Candido Mendes) e da Universidade Federal Fluminense. Presidente do Instituto Ciência Hoje
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO / ALIÁS
Recusada pelo presidente, a hipótese do terceiro mandato vaga pelo mundo da opinião e da política
Primeiro, ao que parece, nunca como antes na história deste país o capitalismo esteve tão consolidado. Há disso sinais eloquentes, todos inscritos no que há tempos designávamos como "a dimensão objetiva da vida social": o mundo da produção, das trocas e da economia política, em geral. Os termos do mundo do mercado estão, no entanto, inscritos, para além da chamada vida material, na configuração das expectativas dos cidadãos da República. O horizonte natural da "boa sociedade" parece não mais colidir com os assim chamados aspectos estruturais e com os valores daquela ordem. A demanda por inclusão, por exemplo, fixada nos semblantes e no vozerio de expressões políticas tidas como de maior radicalidade, está a indicar os contornos do horizonte de expectativas nos quais nos inserimos.
A semântica da inclusão opera na falha - ou na exaustão - da semântica da transformação. É mesmo de uma viragem político-existencial que se trata: a inclusão neste mundo dispensa o salto alucinatório na direção de outro mundo. Com efeito, a passagem entre as duas ordens semânticas, se vier, dependerá da operação mágica de uma megaalquimia: os efeitos mecânicos e de escala da inclusão acabarão por reconfigurar a forma e o sentido da experiência social, transformando-a, ao final. A hipótese traz consigo a tese de sabor fideísta e espontaneísta de que a democratização é antes propulsionada pelo volume material da incorporação do que por alguma direção político-cultural que venha a lhe conferir identidade política concreta. O tema, como sabemos, é vasto e aberto à imparável controvérsia, com implicações fortes para uma teoria da agência política e social.
Em segundo lugar, o cenário de consolidação capitalista, no entanto, é assaltado por uma curiosa assincronia: no âmbito econômico, os valores e as práticas do livre mercado; na esfera pública, valorização do Estado. É certo que os ventos da crise permitiram certa demonização retórica oficial dos efeitos deletérios de uma concepção de mundo que pensa a sociedade na ótica dos negócios. Mas, a despeito da conjuntura aziaga, a assincronia está posta desde 2003 (e mesmo desde antes). O interessante é que não se trata de uma oposição cujos polos estejam fixados respectivamente na sociedade e no Estado. É no núcleo mesmo da gestão do Estado que estão abrigados os que expressam, de forma tipificada, aquelas orientações díspares. Uma coalizão elástica e generosa incorpora um arco improvável que transita dos segmentos mais duros da direita social - os seres do agrobusiness e do mundo agrário, por exemplo - a hirsutas expressões do igualitarismo (um tanto desorientadas, é certo, pela linguagem do "reconhecimento"), nas hostes da esquerda.
Entre os antípodas desse arco, uma atualização prática de um mito brasileiro generoso: há lugar para todos. Mas, no lugar da harmonia e do "jogo cooperativo", a guerra de posições do interior do Estado. Nada de mobilização autônoma de forças sociais, o que implicaria a quebra do equilíbrio frágil daquilo que Luiz Werneck Vianna, em ensaio iluminado, identificou com a antiga imagem do "estado de compromisso". Se fosse outro o desenho, quanto mais os incluídos no arco reforçassem suas posições no âmbito da sociedade, mais difícil seria a administração política do governo.
Menos do que "Estado de Compromisso", parece-me ser o caso de uma "situação de compromisso" : uma forma de administrar o conflito político e social que depende do desempenho de seu principal operador pessoal. Estamos menos aqui na chave do pacto que deu origem ao consenso social europeu dos anos 50 e 60 e mais em um universo que exige as artes de um operador virtuoso.
Lula, ícone do presidencialismo de animação, veste bem a fatiota. Ninguém melhor do que ele se apresenta como protagonista de um mito de integração básica. Tem-se aqui o ator que estabelece as linhas de sutura - nunca de ruptura. Da assincronia entre economia e política passamos, pois, para a presença de um grande operador de sincronias, o presidente. É de se perguntar, a sustentabilidade do arranjo pode prescindir da presença física do seu operador?
O terceiro ponto: a pergunta precipita o diagnóstico geral sobre uma questão de conjuntura. O calendário eleitoral é uma das interpelações que o curto prazo impõe ao modo lulista de governar e a sua aparente imprescindibilidade na gestão sistêmica do país. Negada expressamente pelo presidente, a hipótese do terceiro mandato parece ainda assim errar, de algum modo, pelo mundo da opinião e da política, sem desaparecer inteiramente do horizonte e sem que inexistam dinâmicas propiciadoras, de ordem mais geral.
Mesmo como hipótese velada, o terceiro mandato poderá gerar efeitos imediatos. Não é absurdo imaginar benefícios para a oposição, em temporada de baixa qualificação política e cognitiva. Um governo não ultrapassável à direita não encontra na oposição conservadora reparos maiores, a não ser os de ocasião ou fundados em desvios - reais ou suspeitados - de conduta moral. A tese do terceiro mandato, se explicitamente posta, dará à oposição uma referência vertebradora. Dar-lhe-á ensejo a que abandone a guerrilha insincera do varejo e uma oportunidade para afirmações compungidas, e talvez não menos inautênticas, de apego à legalidade, com direito, por certo, a farto pugilato judiciário.
Desde o Golpe da Maioridade, em 1840, até os dias que correm, o País experimentou uma associação entre o enfrentamento de desafios macropolíticos, econômicos e sociais com o alongamento do calendário político, no sentido da maior durabilidade quer dos mandatos, quer dos arranjos que os sustentam. Da Maioridade resultou a plena instalação do Poder Moderador, e seu papel crucial para a consolidação do Estado Nacional. A viabilidade institucional da Primeira República resultou de um arranjo extralegal, estabelecido pelo presidente Campos Salles (1898-1902), que, a despeito da Constituição, eliminou do horizonte a possibilidade de vitória eleitoral das oposições. Os cenários de 1930, do Estado Novo e do experimento-64 têm todos como fulcro a perspectiva de congelamento e de extensão do ciclo político, em nome das transformações fundas na ordem social. Fernando Henrique Cardoso, por fim, submeteu o calendário político do País a seu diagnóstico que era imprescindível para a felicidade geral. Foi um dos pioneiros de recente prática sul-americana. Em todos esses momentos, dimensões sistêmicas fundamentais para o País estavam a ser tratadas.
Não parece ser trivial a associação entre a consolidação das dinâmicas básicas do mundo capitalista e a presença de mecanismos de minimização dos conflitos sociais "naturais". Lula, avesso à luta de classes, tem cumprido papel inestimável a tal respeito. Tal como nos momentos anteriormente mencionados, aqui estão a ser dados passos cruciais para a definição do que é e será o País. De tal cenário poderá resultar a alucinação da imprescindibilidade.
Viável ou não, em termos políticos e legais, o tema do terceiro mandato poderá vir a ser afetado, no entanto, pelo comportamento do principal personagem. Lula tem demonstrado aversão à hipótese. Apesar da ação de áulicos aflitos e gulosos, não há como apostar na insinceridade presidencial. Por certo, a política "è mobile", mas Lula, como um dos mais importantes personagens da história da República, sabe que sua bela biografia não terá acréscimo positivamente notável diante da mácula de haver modificado a Constituição, com finalidades idênticas às de seu antecessor.
*Professor titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Universidade Candido Mendes) e da Universidade Federal Fluminense. Presidente do Instituto Ciência Hoje
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