Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
Muçulmanos descobriram que a religião pode ser um grande instrumento para o surgimento de uma nação
EM 2003 , quando os EUA decidiram fazer guerra ao Afeganistão e ao Iraque, houve um protesto contra a segunda guerra, mas o apoio das Nações Unidas para a primeira, porque o governo do Taleban abrigava abertamente os terroristas da Al Qaeda. Em um primeiro momento, com a derrubada dos nacionalistas do Taleban, pareceu que os EUA haviam ganho a guerra, mas aos poucos o grupo islâmico se reorganizou no próprio Afeganistão e no vizinho Paquistão, e agora, apesar do aumento das tropas americanas naquele país, não há vitória à vista. Pelo contrário, para muitos analistas a guerra se estenderá indefinidamente, já que se trata de uma guerra de independência nacional.
O fato novo é a pressão do Paquistão, que sempre se associou aos Estados Unidos, para que o governo americano faça um acordo com o Taleban. De acordo com o serviço de inteligência ou espionagem dos militares paquistaneses, a guerra, que hoje se trava em parte no próprio território do Paquistão, está ameaçando desestabilizar o país. Diz um relatório do serviço de inteligência paquistanês: "O levante no Paquistão reforça ainda mais a percepção de que há a ocupação estrangeira do Afeganistão. Isso resultará em maior número de mortes de civis; implicará alienação ainda maior da população local. Portanto, maior resistência às tropas externas".
Que tipo de acordo com o Taleban poderia fazer sentido para os Estados Unidos? O critério fundamental deste país nas suas relações externas é o da segurança nacional, que inclui os interesses econômicos. Se os Estados Unidos continuarem a entender sua segurança nacional como incompatível com a existência de governos islâmicos nos países muçulmanos -ou seja, de governos nacionalistas que usam o islã como instrumento de união e mobilização política-, não há acordo possível.
Mas também não há solução possível porque os povos muçulmanos descobriram algo que os países hoje ricos experimentaram desde o século 16: que a religião pode ser um grande instrumento para que um povo se transforme em nação, construa um Estado e realize sua revolução nacional e capitalista.
Se, entretanto, o critério for o de neutralizar grupos terroristas como a Al Qaeda, existe possibilidade de acordo. Em 2003 o Taleban não estava suficientemente motivado para expulsar esse grupo terrorista radical de seu território. O tempo, entretanto, passou. Os EUA e os demais grandes países mostraram que não estão dispostos a aceitar governos que apoiem grupos terroristas. Não há razão, portanto, para que os líderes do Taleban não façam um acordo de renúncia do apoio ao terrorismo e de saída do Paquistão, em troca de retirada das tropas estrangeiras do seu território.
Por enquanto não creio na possibilidade de um acordo desse tipo, não obstante a pressão do Paquistão. Os Estados Unidos têm uma visão geopolítica da segurança nacional atrasada, muito semelhante à visão dominante no final do século 19.
Não perceberam que as lutas de liberação nacional só podem ter um fim estável: a independência da nação. As nações que buscam sua autonomia podem aceitar por algum tempo que elites dependentes e corruptas associadas a interesses internacionais controlem seu Estado, mas mais cedo ou mais tarde surgirão grupos nacionalistas ou patrióticos que, para alcançarem a verdadeira independência nacional, empunharão armas e realizarão sua revolução nacional e capitalista.
Uma revolução que é fundamental para esse povo e não ameaça a segurança dos países ricos.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
Muçulmanos descobriram que a religião pode ser um grande instrumento para o surgimento de uma nação
EM 2003 , quando os EUA decidiram fazer guerra ao Afeganistão e ao Iraque, houve um protesto contra a segunda guerra, mas o apoio das Nações Unidas para a primeira, porque o governo do Taleban abrigava abertamente os terroristas da Al Qaeda. Em um primeiro momento, com a derrubada dos nacionalistas do Taleban, pareceu que os EUA haviam ganho a guerra, mas aos poucos o grupo islâmico se reorganizou no próprio Afeganistão e no vizinho Paquistão, e agora, apesar do aumento das tropas americanas naquele país, não há vitória à vista. Pelo contrário, para muitos analistas a guerra se estenderá indefinidamente, já que se trata de uma guerra de independência nacional.
O fato novo é a pressão do Paquistão, que sempre se associou aos Estados Unidos, para que o governo americano faça um acordo com o Taleban. De acordo com o serviço de inteligência ou espionagem dos militares paquistaneses, a guerra, que hoje se trava em parte no próprio território do Paquistão, está ameaçando desestabilizar o país. Diz um relatório do serviço de inteligência paquistanês: "O levante no Paquistão reforça ainda mais a percepção de que há a ocupação estrangeira do Afeganistão. Isso resultará em maior número de mortes de civis; implicará alienação ainda maior da população local. Portanto, maior resistência às tropas externas".
Que tipo de acordo com o Taleban poderia fazer sentido para os Estados Unidos? O critério fundamental deste país nas suas relações externas é o da segurança nacional, que inclui os interesses econômicos. Se os Estados Unidos continuarem a entender sua segurança nacional como incompatível com a existência de governos islâmicos nos países muçulmanos -ou seja, de governos nacionalistas que usam o islã como instrumento de união e mobilização política-, não há acordo possível.
Mas também não há solução possível porque os povos muçulmanos descobriram algo que os países hoje ricos experimentaram desde o século 16: que a religião pode ser um grande instrumento para que um povo se transforme em nação, construa um Estado e realize sua revolução nacional e capitalista.
Se, entretanto, o critério for o de neutralizar grupos terroristas como a Al Qaeda, existe possibilidade de acordo. Em 2003 o Taleban não estava suficientemente motivado para expulsar esse grupo terrorista radical de seu território. O tempo, entretanto, passou. Os EUA e os demais grandes países mostraram que não estão dispostos a aceitar governos que apoiem grupos terroristas. Não há razão, portanto, para que os líderes do Taleban não façam um acordo de renúncia do apoio ao terrorismo e de saída do Paquistão, em troca de retirada das tropas estrangeiras do seu território.
Por enquanto não creio na possibilidade de um acordo desse tipo, não obstante a pressão do Paquistão. Os Estados Unidos têm uma visão geopolítica da segurança nacional atrasada, muito semelhante à visão dominante no final do século 19.
Não perceberam que as lutas de liberação nacional só podem ter um fim estável: a independência da nação. As nações que buscam sua autonomia podem aceitar por algum tempo que elites dependentes e corruptas associadas a interesses internacionais controlem seu Estado, mas mais cedo ou mais tarde surgirão grupos nacionalistas ou patrióticos que, para alcançarem a verdadeira independência nacional, empunharão armas e realizarão sua revolução nacional e capitalista.
Uma revolução que é fundamental para esse povo e não ameaça a segurança dos países ricos.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
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