Fonte: Gramsci e o Brasil
Olivier Besancenot e Michael Löwy. Che Guevara: uma chama que continua ardendo. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
Há 50 anos uma revolução nacionalista e anti-imperialista triunfou em Cuba, inaugurando uma nova fase na história da esquerda latino-americana. Mesmo influenciando uma grande parcela da esquerda regional durante muitos anos, o guevarismo, alicerce teórico da revolução cubana, esgotou-se diante da inviabilidade de outra revolução na região baseada no modelo cubano. Com efeito, a palavra “revolução” desaparecia gradualmente da cultura política da esquerda latino-americana para dar lugar à perspectiva da democracia, num processo de autocrítica e renovação de importância decisiva para a sua viragem estratégica das últimas décadas.
Numa América Latina onde as esquerdas renovadas alcançaram o poder nos últimos anos por meios reconhecidamente democráticos, respeitando o processo eleitoral e as instituições, a esquerda inspirada no Che, incapaz de elaborar novos referenciais para interpelar os desafios do século XXI, mira o presente com os olhos presos no passado e volta à carga com a perspectiva de chegar mais fortalecida num possível retorno, em momento oportuno.
Parece não ser outro o sentido da edição deste Che Guevara de Michael Löwy e Olivier Besancenot, publicado no ano de 2009 pela editora da Unesp. Sem outra preocupação, o livro surge como um chamado para aqueles que ainda acreditam que a revolução constitui uma palavra de ordem rigorosamente adequada ao cenário político atual, não apenas na América Latina.
A figura de Che Guevara, modelo do guerrilheiro revolucionário latino-americano e terceiro-mundista por excelência, exerce ainda hoje uma grande atração entre os jovens da região.
No passado, muitos se imaginaram no lugar do próprio Che, assumindo o papel do aventureiro romântico que parte em uma jornada de formação que o levaria até Cuba. Como se sabe, após conhecer Fidel Castro e engajar-se em sua revolução, Che Guevara tornou-se um dos principais mitos não apenas da Cuba revolucionária como da própria esquerda revolucionarista.
É precisamente isso que se repõe com essa publicação, na qual fica clara uma leitura anacrônica fundamentada num marxismo ortodoxo, que, ao se apropriar da imagem do guerrilheiro argentino, e exaltá-la, não tem outra intenção a não ser desqualificar os avanços dos sistemas políticos que arduamente estão sendo construídos no continente, para atualizar o guevarismo no inicio desse novo século. O Che reaparece aqui como um ícone que emerge para sustentar uma “justa” crítica à economia de mercado, sempre vista como “feroz e brutal”, independentemente de quaisquer outras considerações. Como a exposição desses argumentos aparece de maneira bastante viciada (para dizer o mínimo), tudo soa como uma vazia propaganda ideológica, fora do seu tempo e, consequentemente, fora da realidade.
Esbravejando palavras de ordem, afirmando constantemente a origem marxista de Che Guevara e a coerência entre suas palavras e seus atos, entre o pensamento e a ação, Michael Löwy e Olivier Besancenot buscam resgatar na imagem de Che Guevara o espírito de uma cultura revolucionária adormecida há 20 anos em razão da queda do muro de Berlim, do fim da União Soviética e do definhamento/isolamento político dos cubanos.
Nessa análise do cenário político mundial, Michael Löwy e Olivier Besancenot colocam de um lado o capitalismo e o imperialismo, eternos inimigos da “revolução”, e, do outro, os explorados e oprimidos, guiados pela classe operária. Che Guevara surge como a chama, a fonte de inspiração para uma nova geração que (pasmem!) deve buscar no fuzil a expressão material “da desconfiança dos oprimidos para com o Estado e as classes dominantes” (p. 99). Não se sabe ainda de onde Löwy e Besancenot extraíram a ideia de que a via política de Che rompe com o pacifismo da esquerda latino-americana, sem necessariamente flertar com o aventureirismo e o militarismo (p. 56), símbolos incontestes do guevarismo.
De qualquer modo, segundo os autores, para atenuar os arroubos violentos intrínsecos ao seu pensamento político, Che Guevara proporia o controle da violência para lidar com as ambiguidades humanas, reflexo de todos aqueles que lutam contra as “correntes que os prendem”, que enfrentam hoje não mais a ditadura militar, mas a ditadura do dinheiro.
Questionando-se sobre a ausência de uma teoria sobre a democracia no pensamento de Che, Löwy e Besancenot enfatizam que a “atitude” do guerrilheiro argentino por si só comprovaria que o Che era favorável ao debate livre e ao respeito à pluralidade de opiniões. Os autores nos lembram a todo momento que Che Guevara era um pensador livre das amarras do stalinismo, vinculando-o ao primeiro período do marxismo latino-americano, marcado pelos “grandes ancestrais” do início do século XX, como os marxistas Julio Antonio Mella e José Carlos Mariátegui. Desse modo, o guerrilheiro argentino preservaria uma pureza ideológica que o habilitaria como o símbolo revolucionário do novo século.
Nessa perspectiva, governantes latino-americanos como Evo Morales, na Bolívia, e Hugo Chávez, na Venezuela, surgiriam como representantes legítimos da herança guevarista no século XXI. O “carismático” líder venezuelano, segundo Löwy e Besancenot, seria o herdeiro natural das correntes de esquerda em seu país, influenciadas pelo guevarismo na década de 1960. Retomando os movimentos bolivariano e socialista na Venezuela, Hugo Chávez, segundo os autores, encarnaria o desejo de mudança reivindicado pelas novas gerações de militantes guevaristas, tornando-se um contraponto aos governos de centro-esquerda existentes na América Latina, “convertidos à social-democracia” (p. 102).
Na mesma linha, o importante para Löwy e Besancenot é demonstrar que as manifestações sociais do século XXI — como os fóruns sociais e os protestos contra as instituições financeiras internacionais e a guerra imperialista no Oriente Médio, por exemplo —, somadas a lideranças políticas supostamente de esquerda, atualizam o combate comum contra a dominação imperialista a partir do momento em que criticam a “globalização capitalista” e buscam um novo paradigma de civilização, pautado no socialismo humanista de Che Guevara.
Em suma, Michael Löwy e Olivier Besancenot se apropriam da imagem de Che Guevara para justificar um ideal comunista romântico presente apenas em suas cabeças e dissociado da realidade atual. Nessa leitura vale tudo, inclusive afirmar que Che reconhecia a importância da classe operária como vanguarda do movimento revolucionário, como instrumento primordial para derrotar o capitalismo, quando se sabe, por meio do próprio Che Guevara, que ao campesinato estava reservado o lugar da verdadeira classe que guiaria o processo revolucionário e concretizaria, no espírito do guerrilheiro camponês, a verdadeira revolução.
Como nesse livro tudo é possível, os autores chegam a afirmar que a ideia segundo a qual a Cordilheira dos Andes poderia se tornar a Sierra Maestra da América Latina nada teria de absurda. Logo, Che Guevara encarnaria a esperança dessas novas gerações de mudar o mundo por todos os meios necessários, entre eles a luta armada. A mensagem transmitida pelos autores busca alcançar uma parcela da esquerda que se põe, de maneira obscurantista, contra o fortalecimento das instituições e a necessária linha de composições políticas que permitam aos governos regionais consolidar a democracia em seus países, apoiados por uma ampla maioria.
Em suma, mobilizando um personagem já ultrapassado como orientação para a ação, o livro de Michael Löwy e Olivier Besancenot visa contribuir tão somente com a desqualificação das várias esquerdas que na América Latina mantêm como eixo central de suas preocupações a manutenção do pluripartidarismo do regime democrático e a incorporação social ampliada. Ao invés de buscar respostas para os novos desafios enfrentados pelos países latino-americanos, o livro preocupa-se apenas em atualizar os velhos mantras da esquerda revolucionarista há muito tempo em desuso, mas nunca devidamente sepultados.
Ítalo Rodrigo Xavier Cordeiro é mestrando de História na Unesp/Franca.
Olivier Besancenot e Michael Löwy. Che Guevara: uma chama que continua ardendo. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
Há 50 anos uma revolução nacionalista e anti-imperialista triunfou em Cuba, inaugurando uma nova fase na história da esquerda latino-americana. Mesmo influenciando uma grande parcela da esquerda regional durante muitos anos, o guevarismo, alicerce teórico da revolução cubana, esgotou-se diante da inviabilidade de outra revolução na região baseada no modelo cubano. Com efeito, a palavra “revolução” desaparecia gradualmente da cultura política da esquerda latino-americana para dar lugar à perspectiva da democracia, num processo de autocrítica e renovação de importância decisiva para a sua viragem estratégica das últimas décadas.
Numa América Latina onde as esquerdas renovadas alcançaram o poder nos últimos anos por meios reconhecidamente democráticos, respeitando o processo eleitoral e as instituições, a esquerda inspirada no Che, incapaz de elaborar novos referenciais para interpelar os desafios do século XXI, mira o presente com os olhos presos no passado e volta à carga com a perspectiva de chegar mais fortalecida num possível retorno, em momento oportuno.
Parece não ser outro o sentido da edição deste Che Guevara de Michael Löwy e Olivier Besancenot, publicado no ano de 2009 pela editora da Unesp. Sem outra preocupação, o livro surge como um chamado para aqueles que ainda acreditam que a revolução constitui uma palavra de ordem rigorosamente adequada ao cenário político atual, não apenas na América Latina.
A figura de Che Guevara, modelo do guerrilheiro revolucionário latino-americano e terceiro-mundista por excelência, exerce ainda hoje uma grande atração entre os jovens da região.
No passado, muitos se imaginaram no lugar do próprio Che, assumindo o papel do aventureiro romântico que parte em uma jornada de formação que o levaria até Cuba. Como se sabe, após conhecer Fidel Castro e engajar-se em sua revolução, Che Guevara tornou-se um dos principais mitos não apenas da Cuba revolucionária como da própria esquerda revolucionarista.
É precisamente isso que se repõe com essa publicação, na qual fica clara uma leitura anacrônica fundamentada num marxismo ortodoxo, que, ao se apropriar da imagem do guerrilheiro argentino, e exaltá-la, não tem outra intenção a não ser desqualificar os avanços dos sistemas políticos que arduamente estão sendo construídos no continente, para atualizar o guevarismo no inicio desse novo século. O Che reaparece aqui como um ícone que emerge para sustentar uma “justa” crítica à economia de mercado, sempre vista como “feroz e brutal”, independentemente de quaisquer outras considerações. Como a exposição desses argumentos aparece de maneira bastante viciada (para dizer o mínimo), tudo soa como uma vazia propaganda ideológica, fora do seu tempo e, consequentemente, fora da realidade.
Esbravejando palavras de ordem, afirmando constantemente a origem marxista de Che Guevara e a coerência entre suas palavras e seus atos, entre o pensamento e a ação, Michael Löwy e Olivier Besancenot buscam resgatar na imagem de Che Guevara o espírito de uma cultura revolucionária adormecida há 20 anos em razão da queda do muro de Berlim, do fim da União Soviética e do definhamento/isolamento político dos cubanos.
Nessa análise do cenário político mundial, Michael Löwy e Olivier Besancenot colocam de um lado o capitalismo e o imperialismo, eternos inimigos da “revolução”, e, do outro, os explorados e oprimidos, guiados pela classe operária. Che Guevara surge como a chama, a fonte de inspiração para uma nova geração que (pasmem!) deve buscar no fuzil a expressão material “da desconfiança dos oprimidos para com o Estado e as classes dominantes” (p. 99). Não se sabe ainda de onde Löwy e Besancenot extraíram a ideia de que a via política de Che rompe com o pacifismo da esquerda latino-americana, sem necessariamente flertar com o aventureirismo e o militarismo (p. 56), símbolos incontestes do guevarismo.
De qualquer modo, segundo os autores, para atenuar os arroubos violentos intrínsecos ao seu pensamento político, Che Guevara proporia o controle da violência para lidar com as ambiguidades humanas, reflexo de todos aqueles que lutam contra as “correntes que os prendem”, que enfrentam hoje não mais a ditadura militar, mas a ditadura do dinheiro.
Questionando-se sobre a ausência de uma teoria sobre a democracia no pensamento de Che, Löwy e Besancenot enfatizam que a “atitude” do guerrilheiro argentino por si só comprovaria que o Che era favorável ao debate livre e ao respeito à pluralidade de opiniões. Os autores nos lembram a todo momento que Che Guevara era um pensador livre das amarras do stalinismo, vinculando-o ao primeiro período do marxismo latino-americano, marcado pelos “grandes ancestrais” do início do século XX, como os marxistas Julio Antonio Mella e José Carlos Mariátegui. Desse modo, o guerrilheiro argentino preservaria uma pureza ideológica que o habilitaria como o símbolo revolucionário do novo século.
Nessa perspectiva, governantes latino-americanos como Evo Morales, na Bolívia, e Hugo Chávez, na Venezuela, surgiriam como representantes legítimos da herança guevarista no século XXI. O “carismático” líder venezuelano, segundo Löwy e Besancenot, seria o herdeiro natural das correntes de esquerda em seu país, influenciadas pelo guevarismo na década de 1960. Retomando os movimentos bolivariano e socialista na Venezuela, Hugo Chávez, segundo os autores, encarnaria o desejo de mudança reivindicado pelas novas gerações de militantes guevaristas, tornando-se um contraponto aos governos de centro-esquerda existentes na América Latina, “convertidos à social-democracia” (p. 102).
Na mesma linha, o importante para Löwy e Besancenot é demonstrar que as manifestações sociais do século XXI — como os fóruns sociais e os protestos contra as instituições financeiras internacionais e a guerra imperialista no Oriente Médio, por exemplo —, somadas a lideranças políticas supostamente de esquerda, atualizam o combate comum contra a dominação imperialista a partir do momento em que criticam a “globalização capitalista” e buscam um novo paradigma de civilização, pautado no socialismo humanista de Che Guevara.
Em suma, Michael Löwy e Olivier Besancenot se apropriam da imagem de Che Guevara para justificar um ideal comunista romântico presente apenas em suas cabeças e dissociado da realidade atual. Nessa leitura vale tudo, inclusive afirmar que Che reconhecia a importância da classe operária como vanguarda do movimento revolucionário, como instrumento primordial para derrotar o capitalismo, quando se sabe, por meio do próprio Che Guevara, que ao campesinato estava reservado o lugar da verdadeira classe que guiaria o processo revolucionário e concretizaria, no espírito do guerrilheiro camponês, a verdadeira revolução.
Como nesse livro tudo é possível, os autores chegam a afirmar que a ideia segundo a qual a Cordilheira dos Andes poderia se tornar a Sierra Maestra da América Latina nada teria de absurda. Logo, Che Guevara encarnaria a esperança dessas novas gerações de mudar o mundo por todos os meios necessários, entre eles a luta armada. A mensagem transmitida pelos autores busca alcançar uma parcela da esquerda que se põe, de maneira obscurantista, contra o fortalecimento das instituições e a necessária linha de composições políticas que permitam aos governos regionais consolidar a democracia em seus países, apoiados por uma ampla maioria.
Em suma, mobilizando um personagem já ultrapassado como orientação para a ação, o livro de Michael Löwy e Olivier Besancenot visa contribuir tão somente com a desqualificação das várias esquerdas que na América Latina mantêm como eixo central de suas preocupações a manutenção do pluripartidarismo do regime democrático e a incorporação social ampliada. Ao invés de buscar respostas para os novos desafios enfrentados pelos países latino-americanos, o livro preocupa-se apenas em atualizar os velhos mantras da esquerda revolucionarista há muito tempo em desuso, mas nunca devidamente sepultados.
Ítalo Rodrigo Xavier Cordeiro é mestrando de História na Unesp/Franca.
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