Em sua viagem aos Estados Unidos, nos idos de 1830, que renderia o clássico "A democracia na América", uma das características que mais chamavam a atenção do francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), no regime que florescia no Novo Mundo, era a tábula rasa institucional de um modelo igualitário. O defeito da democracia, para Tocqueville, era reduzir todos a uma perigosa situação de equidade. Sem figuras notáveis e instituições proeminentes, a sociedade democrática seria um terreno livre para o despotismo do poder central. O que não acontecia na Europa, onde mesmo no Antigo Regime, a nobreza e o clero se erguiam como obstáculos na paisagem. Na América - pelo menos na fase em que Tocqueville a conheceu - a igualdade de condições entre os cidadãos e a falta de fortes poderes autônomos eram uma ameaça à própria existência do regime.
Tocqueville não falava de paradoxo. Mas tal argumento antecipou, de modo precursor, as contradições da democracia. Ela carrega o ovo da serpente do totalitarismo - como o mundo veria um século mais tarde com a ascensão do nazismo.
As lições de Tocqueville resistiram ao tempo e se mostraram pertinentes, mesmo em ambientes diversos ou contextos menos extremos. É a lógica que funciona. A lei de ferro da oligarquia - talvez a mais célebre formulada pela ciência política - segue o mesmo princípio. Quando Robert Michels, ao estudar as estruturas do primeiro partido de massas, o social-democrata alemão, chegou à conclusão de que quem fala em organização fala, necessariamente, de uma oligarquia, ele estava, mesmo sem querer, na trilha de Tocqueville.
É esse mesmo argumento que está por trás de um estudo que procura explicar as razões do sucesso da democracia brasileira, feito pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco, Marcus Melo. Autor do artigo "Strong presidents, robust democracies?", Melo mostra como o Brasil, contrariando todas as previsões produzidas nas últimas décadas, deixou de ser o país "atrasadão", o retardatário, o "reform laggard", no linguajar de organismos como Banco Mundial, BID, PNUD e "think tanks" de Washington, e passou a ser um exemplo de instituições bem sucedidas.
Em seu trabalho, o professor lembra que o Brasil, comparado a outras nações latino-americanas, era visto como um sistema político extremamente disfuncional. Várias características institucionais apontavam para um futuro sombrio. O Brasil representava a receita do fracasso e estava atrás de todos os vizinhos. Atrasou-se a embarcar na onda das privatizações (como México e Bolívia), a realizar uma reforma da Previdência (como Chile e Argentina) e promulgava, em 1988, uma Constituição que era motivo de chacota. A ironia do economista e ex-ministro Delfim Netto servia de inspiração. O teto de 12% previsto para a taxa de juros era o equivalente de uma tentativa de se suspender a lei da gravidade.
O Brasil estaria irremediavelmente preso ao chão. Não só por isso. Mas principalmente por suas instituições. O presidencialismo forte, combinado com um quadro partidário fragmentado e um federalismo robusto, indicava um cenário desfavorável, propenso à instabilidade, à ingovernabilidade e, com uma dose de azar, a mais uma quebra de regime, e um novo período autoritário.
A lógica seria simples: com um presidente forte, dotado de prerrogativas legislativas, e eventualmente sem base partidária, o Brasil corre o risco de cair em duas situações, caso o mandatário perca apoio. Ou o presidente recua e se finge de morto para sobreviver até o fim do mandato, ou decide enfrentar o Congresso, com os poderes à sua disposição - alternativa mais provável e passível de crises militares e intervenção das forças armadas.
Marcos Melo lembra que, há 20 anos, países como Venezuela, Equador, México, Argentina eram tidos como os mais promissores na região por terem um presidencialismo fraco, próximo do modelo americano, no qual a separação de poderes é clara e o presidente não pode apresentar projetos de lei, nem tem iniciativa exclusiva em matérias fiscal, tributária e administrativa, como o Brasil.
O perigo estava no presidencialismo forte brasileiro e no chileno. Se o governante máximo tem grandes prerrogativas, vai querer utilizá-las para permanecer no poder, mesmo à custa de instabilidade e conflitos institucionais.
No entanto, nenhuma das previsões pessimistas se confirmaram. Pelo contrário. Enquanto Brasil e Chile figuram como modelos, os antes promissores Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina é que entraram em descompasso, com distúrbios sociais e ameaças de golpe de Estado. Como explicar os erros dos prognósticos?
Para Marcos Melo, um presidente forte pode ser vantajoso ou até fundamental, como o foi, no caso do Brasil, para enfrentar a hiperinflação e a crise do endividamento dos Estados, nos anos 90. Mas, intuitivamente, é um complicador, pela possibilidade de abuso do poder. O que só não ocorreu porque os presidentes no Brasil e no Chile são constrangidos por instituições e atores fortes, como o Judiciário, o Legislativo, a mídia e uma burguesia industrial de peso. É um argumento para lá de tocqueviliano.
Melo classifica o Judiciário brasileiro como um dos mais independentes da região, atrás apenas do chileno e do uruguaio. No caso extremo, estão Argentina, Equador, Bolívia e Venezuela. Até o Legislativo, tido como um apêndice do Executivo, seria forte, institucionalizado, dotado de assessoria especializada e comissões que garantem um espaço de independência.
"São obstáculos que restringem a ação do presidente. A aprovação de um terceiro mandato de Lula não ocorreu não em razão de uma virtude individual dele, mas porque a sociedade não aceitaria", afirma o cientista político.
Melo lembra que uma questão ainda precisa ser respondida: o que favorece e dá sustentação a estas instituições fortes? Para ele, o mecanismo principal é a grande competição política nas eleições presidenciais, com dois campos bem definidos. "José Serra perdeu por uma margem relativamente pequena, mesmo contra o governo de um presidente extremamente popular", diz Marcus Melo.
Cristian Klein é repórter de Política.
FONTE: VALOR ECONÔMICO