No Brasil, quando falamos em desonestidade dos políticos, entendemos que eles são corruptos e roubam dinheiro público. No Reino Unido, entende-se que eles - ou ele, um modelo em especial, Tony Blair - mentem à sociedade. No Brasil, o descontentamento se expressa em postagens mal escritas e em artigos repetitivos nos jornais. Na Inglaterra, o protesto resultou em literatura - e da boa. Conheço três livros a respeito, dos quais dois foram transpostos para o cinema. São "O Fantasma", de Robert Harris, publicado em 2007 e depois filmado por Polanski (como "O Escritor Fantasma"), e "A Pesca do Salmão no Iêmen" (2006), de Paul Torday, que virou o filme que acaba de estrear em nosso país, com o impossível nome de "Amor impossível", dirigido por Lasse Hallström.
Falta ir para o cinema o melhor desses bons livros, "The Uncommon Reader", de Alan Bennett (2007). O autor imagina que a rainha Elizabeth começa a ler e isso muda sua vida, tornando-a mais crítica dos fatos e ao mesmo tempo, talvez, uma pessoa melhor. O título é um jogo de palavras. Na Inglaterra, "common" é o plebeu. Por isso, a Câmara dos Comuns é eleita pelos plebeus, os não nobres, a maioria esmagadora da sociedade. A rainha é a mais "uncommon" das pessoas, porque está no auge da nobreza - mas a rainha leitora também se torna uma pessoa incomum, porque começa a pensar por si mesma. Daí que, no final do livro, ela observe que seu décimo primeiro-ministro, o governante marqueteiro, tem auxiliares ignorantes e que se orgulham disso. Nenhum deles tem cultura. Todos somente se preocupam em marketing.
Esse é o ponto comum das críticas a um primeiro-ministro que aparece nos três livros com outros nomes ou mesmo sem nome, mas porta os traços de Tony Blair. Ele não dá importância à verdade dos fatos, mas à sua aparência. Tudo vale, se puder ser aproveitado politicamente. De certa forma, isso já aparecia num bom filme que exalta Blair, que é "A rainha" (2006). Elizabeth II era apresentada no seu pior momento, quando ela e o marido não compreenderam o amor popular pela princesa Diana e, em vez de se associarem à enorme dor popular, esconderam os príncipes recém-órfãos. Blair, chamando Diana de "princesa do povo", soube capitalizar o sentimento popular. Mas em "A rainha", Stephen Frears mostra Blair como o líder que usa sua habilidade política para, na última cena, canalizar o apoio do povo - e da monarca - para a mais que necessária reforma na educação.
Numa chave mais leve, "Simplesmente Amor" (2003) apresenta um premier, representado por Hugh Grant, que se apaixona pela empregada do palácio e, por esse amor, também enfrenta o presidente dos Estados Unidos, que quer possuir a moça e, metaforicamente, o Reino Unido. É um filme agradável, uma comédia romântica. Mas ainda é um filme da lua de mel com Blair - a quem sugere que, afastando-se da liderança norte-americana, ele seria uma pessoa decente.
Esse Blair - que também conseguiu o acordo de paz na Irlanda do Norte, um feito mais que elogiável - desapareceu. Em "O Fantasma", ele se esconde nos Estados Unidos, para fugir ao ódio de seu povo e talvez também à justiça de seu país. É até suspeito de ser agente norte-americano, traidor portanto de sua pátria. Em "Uncommon reader", ele oscila entre a falta completa de cultura e a manipulação mais desbragada das pessoas. Em "Amor impossível", só está interessado em imagens que rendam dividendos políticos. A história é a mais cômica das três: um rico xeique iemenita se dispõe a pagar a fortuna que for necessária para criar e pescar salmões no Iêmen - um país que não tem a água nem a temperatura adequadas para criar esses peixes típicos de lugares frios. O governo britânico, desejoso de mostrar uma cooperação bem sucedida com um país árabe, seja qual for, obriga um cientista a entrar nesse projeto absurdo. E a assessora de imprensa do premier não recua diante de nenhum expediente para conseguir notícias favoráveis à imagem do governo.
Agora, a questão que cabe é: por que os britânicos convertem seu descontentamento com um governo que acabou mal em boa literatura, e nós não? Nos Estados Unidos o ótimo Philip Roth faz algo parecido, com a crônica, bem em filigrana, dos anos neoconservadores em seu país. Isso aparece no fundo de seus livros, como quando ele menciona o processo movido contra Clinton devido a seu romance com uma estagiária. Mas ignoro uma produção literária ou mesmo artística em outros países que se compare ao modo como os britânicos transformam os anos de seu descontentamento em literatura.
Como ficamos nós? Do período de FHC, restaram as tiras poéticas de Luís Fernando Veríssimo, "As cobras", dizendo que o então presidente estava se descuidando do "social" (que despencava da árvore, caía num rio etc.). Da gestão Lula, nada. Um escritor notável, que é João Ubaldo Ribeiro, não perdeu ocasião de atacá-lo em sua coluna nos jornais, mas suas crônicas não se alçam ao nível de seus romances, não indo além do plano de algum comentador habitual. Por que não temos uma literatura que trate, com qualidade, da nossa política? Sei que não é fácil. Parece que nos acostumamos mais ao discurso semi-difamador, em vez de nos dispormos a um texto criativo. Curiosamente, os romances britânicos que mencionei são muito críticos. Condenam Blair sem piedade, mesmo que nunca mencionem seu nome. São ferozes com o marketing político que, aliás, hoje é uma prática quase unânime no mundo. Só que eles criticam bem. São sofisticados. Dá prazer lê-los. Ficarão, creio eu, nas estantes dos livros que vale a pena ter, mesmo daqui a décadas.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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