Final do discurso de FHC, na ABL, em 10/9/2013
"As condições favoráveis da economia mundial e o empenho dos governos que sucederam ao meu ampliaram a inclusão social, inclusive dos negros, a partir das bases que lancei em meu governo. Seria preciso dizer algo mais para justificar minha fidelidade ao propósito da erradicação da pobreza no país?
Reitero: estamos longe de ficar tranqüilos com o já feito. Vou concentrar-me, para finalizar, em um só ponto: quanto avançamos na democracia?
A pergunta não se compagina com respostas simples. São inegáveis os avanços na arquitetura política institucional a partir da Constituição de 1988. Houve avanços se dermos o significado de democrático a um governo submetido às leis, cujos mandantes dependem do sufrágio popular majoritário e cujo vigor deriva do respeito às minorias e de um jogo de equilíbrios entre os poderes. Tudo isso em um clima de liberdade de organização, de crenças, de opiniões e com todas as demais garantias que asseguram as liberdades “dos antigos”, as públicas. Mesmo a liberdade moderna, das pessoas, de igualdade de gênero e de respeito às inclinações sexuais vêm ganhando terreno.
Resumo o sentimento de incompletude que tenho com respeito à nossa democracia, dizendo que se a arquitetura institucional está quase acabada (ainda se vêem andaimes), falta o essencial: a alma democrática. Nossa cultura de favores e privilégios, nosso amor à burocracia, à pompa dos poderosos e ricos, de retraimento da responsabilidade pessoal e atribuição de culpa aos outros, principalmente ao governo e às coletividades, desobriga o cidadão a fazer sua parte, a sentir-se comprometido. O corporativismo que renasce e passa do plano político ao social levando de roldão sindicatos e até igrejas, e se encastela nos partidos, mesmo nos que nasceram com o propósito de combatê-lo, é o cupim de nossa democracia. Se à tentação corporativista somarmos os impulsos populistas, que não lhe são incompatíveis, temos a descrição de um sistema político enfermo.
A cultura democrática se baseia no sentimento da igualdade, pelo menos perante a lei -- posto que as desigualdades de nascimento sejam congênitas ao DNA e as de riqueza ao sistema econômico prevalecente. Como, então, falar de igualdade de oportunidades em sentido próprio?
No plano das instituições político-partidárias e do Congresso Nacional, para ater-me só a este aspecto, que tipo de representação política nos é assegurada e como se dá o equilíbrio entre os poderes? Para começar, temos uma democracia na qual os verdadeiros representados não são os cidadãos, mas as organizações intermediárias (uma prefeitura, uma empresa, uma igreja, um clube de futebol, etc.) que financiam as campanhas e colhem em suas malhas o indivíduo eleitor. É àqueles, os “eleitores de fato”, que o representante serve, mantendo tênue a relação com a massa do eleitorado, salvo no caso dos poucos parlamentares eleitos por correntes de opinião.
Dos partidos que dizer? Mesmo sendo injusto: se acomodaram às práticas, desdenham da relação direta com as comunidades, preferem não tomar partido diante de questões controversas na sociedade e abdicam crescentemente da função fiscalizadora do executivo, que a Constituição lhes garante, e mesmo da iniciativa na legislação. Abrem, assim, espaço às ações de tipo “rolo compressor” do executivo. Preferem barganhar com ele os benefícios para as entidades intermediárias que lhes garantem o voto. A agenda pública, nestas circunstâncias, se encolhe. A discussão fenece nos parlamentos e as ruas sequer são ouvidas.
A tal ponto chegou a distorção da idéia de representação entre nós que os interesses e os valores se vêem mais “espelhados” no Congresso do que nele são representados. Os setores organizados da sociedade esperam os resultados das eleições para, post factum, identificar seus representantes. Os candidatos mais comumente calam durante a campanha eleitoral sobre suas convicções e interesses; repetem o que é agradável ao eleitor distante. Depois de eleitos buscam ou reatam conexões com aqueles cujos valores e interesses lhes são mais afins. Na ação legislativa, organizam-se em frentes suprapartidárias (da educação, dos donos de hospital, da saúde, dos bancos, dos ruralistas e por aí afora), para defender valores ou interesses. Não é de estranhar, portanto, a distância crescente entre Congresso e opinião pública, entre elite política e povo.
Até pouco essas fragilidades da República, das instituições, embora percebidas, não encontravam contestação mais ampla. Os setores politizados da sociedade criticavam-nas, mas na medida em que os governos ampliavam os mecanismos de integração social e que os interesses organizados conseguiam ser corporativamente atendidos, a crise institucional limitava-se aos círculos do poder. A própria dinâmica da sociedade, a urbanização abrangente, o aumento no fluxo de rendas e a mobilidade social por ele gerada e, principalmente, as novas tecnologias de comunicação que conectam as pessoas dispensando organizações e lideranças formais, estão dando os primeiros sinais de que há algo mais grave do que as crises habituais entre Congresso, Executivo e sociedade. Essas até agora eram circunscritas ao que chamamos de “opinião pública”, que desde o Império funcionava separada da “opinião nacional”. Estamos assistindo aos primórdios da fusão entre uma e outra opinião. A ampliação da democracia e da liberdade de informação choca-se com as insuficiências da República. À inadequação das instituições acrescenta-se sua desmoralização, agravada por episódios de corrupção. Produz-se assim uma conjuntura em que demos e res publica se desencontram. Não se vê lideranças que falem forte e sejam ouvidas para evitar recaídas nos tormentos da incerteza quanto a nosso destino nacional.
Dito noutras palavras, esboça-se entre nós, como em outros países, uma crise da democracia representativa. Não faltarão forças que desejem dela se aproveitar para proclamar a morte de Locke, de Montesquieu, dos federalistas e de todos os que sonharam em buscar caminhos de maior igualdade sem matar as liberdades nem compactuar com formas plebiscitárias de mando que, sob o pretexto de voltarem a Rousseau, se esquecem das recomendações de Marx que desejava o socialismo como herdeiro das conquistas liberais do Século das Luzes e não como seu coveiro.
Não obstante, é insuficiente proclamar os valores morais da liberdade individual e coletiva. Ou bem reinventamos a democracia contemporânea, salvaguardando a idéia de representação legítima, mas tornando-a transparente e responsável e a ampliamos para incorporar novos segmentos e novas demandas da sociedade ou a pressão “de baixo” poderá ser manipulada por formas disfarçadas de autocracia. As pressões não procedem mais de uma massa informe e desinformada. Existe um novo tipo de participante nas mobilizações. Já não é só o oprimido que se manifesta. As organizações políticas e sociais que representaram até o pouco as camadas menos favorecidas – os sindicatos e movimentos organizados -- quando aparecem, vêem na rabeira dos novos movimentos de protesto. Como essas organizações foram em parte cooptadas pelas forças políticas tradicionais, o desprestígio delas abala a confiança daqueles.
Este novo tipo de pressão existe no Brasil e no exterior. Quando as instituições sufocam a liberdade e a economia não oferece oportunidades à maioria, os movimentos espontâneos, interconectando milhares e mesmo milhões de pessoas pela internet, são capazes de desencadear rebeliões que derrubam governos. Ainda não vimos a força desses movimentos ser capaz de reconstruir as instituições do poder, alçando-as a outro para patamar. Até agora às explosões eventualmente vitoriosas, como no mundo árabe, têm-se seguido novas formas repressivas. E sem instituições que canalizem as forças de renovação estas podem morrer no ato de se expressar.
No caso das sociedades abertas, como a nossa, por enquanto a cada surto popular, não se derrubam governos, mas recai-se no desencanto com a política e com as instituições. Até quando?
Ou nos conformamos com a ideia de que formas de autogoverno brotarão ocasionalmente e conviveremos com grupos anárquicos que predicam a violência, arriscando-nos à ruptura da convivência democrática, ou nos pomos humildemente a dialogar com os vastos setores da sociedade que só formalmente pertencem à pólis. Eles estão, na maioria das vezes, economicamente integrados, politicamente insatisfeitos e possuem identidades culturais diferentes do que até hoje parecia, equivocadamente, ser o mainstream. É só conhecer a realidade das “comunidades” que pontilham nossas cidades ou as periferias infindáveis de seus contornos para sentir a força dessas presenças. Tecnicamente é possível aumentar os mecanismos de escuta e de participação ampliada no processo deliberativo e nas instituições executivas. Politicamente o avanço tem sido muito lento.
Numa palavra: não há tempo a perder para reconstruir a democracia nos moldes das realidades atuais. Neste esforço, a educação e a cultura continuam fundamentais. O momento não é de simples “pregação democrática”, como se este credo construído a duras penas nos últimos séculos fosse o anelo da maioria. Não se trata só de “ensinar”, mas de “aprender” Não estamos diante de uma elite que sabe e de um povo que desconhece. O momento é de respeito à pluralidade das identidades culturais e de reconstrução das instituições para que elas captem e representem o sentimento e os novos interesses da população. Só assim poderemos manter acesa a chama da liberdade, do respeito à representação e da autoridade legítima e evitar que formas abertas ou disfarçadas de autoritarismo e violência ocupem a cena.
Como no passado dos oráculos, a história nos pregou uma peça: “decifra-me ou te devoro!” é o enigma que as ruas, sem o proclamar, deixam entredito sobre a democracia atual. Cabe a todos nós, políticos, artistas, escritores, cientistas ou, simplesmente, cidadãos que prezam a liberdade, passarmos da escuta à ação, para tecer os fios institucionais pelos quais possam fluir os anseios de liberdade, participação e maior igualdade dos que clamam nas ruas."
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