- O Estado de S. Paulo
• O discurso do poder é absurdamente pobre, chega a ofender. O cenário é de horror
Pode não parecer, mas política não é somente – nem sequer principalmente – coação, roubalheira, disputa infrene pelo poder, esforço para destruir inimigos e adversários. Tem uma dimensão nobre, positiva, dedicada à construção de articulações, consensos e legitimidade. O lado sombrio da atividade política, marcado pelo binômio coerção-corrupção, é compensado por um lado solar, vinculado aos temas quentes da vida, aberto para o que é coletivo, público, e para o futuro.
A política sempre flutua entre as extremidades do “bem” e do “mal”, fato que faz tudo o que a orbita aparecer de modo tenso e contraditório para os cidadãos. Mas os cidadãos continuam a ser o que são – portadores de direitos e obrigações – porque integram uma comunidade política. Somos o que somos porque somos animais políticos. Dessa constatação elementar podemos derivar algumas coisas.
Não há vida coletiva sem política, mas nem tudo na vida é política: nem tudo o que pulsa tem em vista o poder, a contestação, a disputa, ou o delineamento de pautas coletivas de ação e zonas sólidas de consenso. Viver também é usufruir, gozar a vida, experimentar os desafios da individualidade e da diferenciação. Ser um animal político é antes de tudo saber pensar e dialogar. A política é um campo exclusivo do agir humano, mas não submete tudo a si. Para incorporar os cidadãos há que existir qualidade, perspectiva e razoabilidade. Massas podem seguir encantadores de serpentes, mas sempre em ritmo de autoritarismo e tragédia.
Não há leis que determinem inflexivelmente o funcionamento da política ou o modo como os cidadãos se relacionam com ela. Política é História, tem suas determinações sociais. Muda com o tempo.
Há épocas, por exemplo, em que tudo está equilibrado: os governos governam, os partidos deixam claras suas ideias e organizam votos e interesses, os cidadãos participam sem sofreguidão e com real motivação do debate público, posicionando-se mediante convicções consistentes, cálculos razoáveis e postulações substantivas. Em outras épocas, porém, tudo parece sem eixo, nada funciona a contento, a insatisfação se generaliza e a pequena política – feita de falcatruas, esperteza, futricas, gestão de curto prazo, histrionismo e personagens menores – infertiliza a grande política; épocas em que a luta pelo poder se torna mais importante do que a viabilização do Estado. Nelas nada brilha de verdade.
Estamos hoje, no Brasil, numa época deste segundo tipo.
A polarização política extremada cria a sensação de que há uma luta de classes prestes a se converter em guerra civil, mas os polos – enfatuados de suas próprias razões – não sabem o que dizer nem procuram dialogar com a sociedade. Limitam-se a trocar socos sem nenhuma regra ou dignidade, como pugilistas caricatos. Enquanto isso, a verdadeira luta de classes evolui na realidade, indiferente à evolução dos agentes polarizados.
Tudo se converte em motivo de ódio, agressão e desqualificação, reverberando e impulsionando uma violência que se encontra colada no chão da sociedade. Não basta ser contra, é preciso ofender e estigmatizar. Bate-se e morre-se por uma lata de cerveja, uma comissão, um jetom ou uma troca de olhares. A mentira e a desfaçatez dão-se as mãos, promessas bombásticas de um dia são atiradas sem cerimônia no lixo do dia seguinte. A encenação política, extenuada pela falta de substância, deriva para a indignação ensaiada, as frases de efeito, a falta de coragem para rever procedimentos e opções.
As reuniões partidárias tornam-se momentos de rasgação de seda, autoconsagração e desentendimento contido. Fala-se de “reforma política” em termos essencializados, como salvação da lavoura, mas jamais se dá um passo sequer em direção à autorreforma, à crítica dos operadores. Os discursos são cifrados, repetitivos: a culpa é sempre dos outros, atos de corrupção não passam de operações corriqueiras de mercado, qualquer discordância é vista como golpe.
É uma época em que a política institucionalizada emite um silêncio ensurdecedor: nenhuma autoridade, nenhuma proposta se mostra capaz de erguer a cidadania e fixar parâmetros. O discurso do poder é absurdamente pobre, chega a ofender. É uma época, também, de vetos e interdições, em que se pensa pouco, se age por impulso e instinto, se fala sobre coisas complexas como se fossem banais. Nem mesmo os intelectuais escapam. O debate democrático não avança.
Em decorrência, a sociedade fica à margem, mastigando a crise, desencantando-se um pouco mais com a política e os políticos, vendo a luz desaparecer no fim do túnel. Aparentemente, ninguém percebe que não se trata de apatia, mas de afastamento. É uma passividade ilusória, alimentada mais pela insatisfação do que pelo desinteresse. Não há como dizer que a maré montante do protesto arrefeceu ou que julho de 2015 não possa repetir junho de 2013, quem sabe em outra chave, não necessariamente melhor.
Os políticos, em particular – eles próprios, seus líderes, seus partidos, suas vozes –, seguem em marcha batida para a deslegitimação, para a perda de contato com a sociedade. Exagerando: movem-se como bandos suicidas, ou zumbis.
O cenário é de horror. Mas não se sabe direito como evoluirá. Há poucas prospecções e elas não chegam ao mundo político, que continua a olhar para o próprio umbigo. Ninguém sabe o que fazer com as reservas políticas e intelectuais do País, com as energias cívicas e associativas que estão de prontidão. Na falta de um eixo comum que coordene tudo, o desperdício e a irracionalidade crescem, a alimentar, no limite, uma marcha para trás, o crescimento insano dos fundamentalismos, o protagonismo primitivo dos retrógrados, o mau funcionamento dos sistemas.
É um momento preocupante porque nada disso vem sendo examinado pelas forças políticas com um mínimo senso de urgência, equilíbrio e responsabilidade.
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*Marco Aurélio Nogueira é professor titular e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações internacionais da UNESP
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