- Folha de S. Paulo
Nada melhor do que pensar sobre o que a gente não sabe. Isto é, tentar compreender, descobrir o que não compreendemos nem conhecemos.
Pensei isso aí quando me ocorreu a seguinte observação: as artes são linguagens, mas diferentes da linguagem verbal, e daí a necessidade de aprendê-las, de dominá-las, para podermos nos expressas por meio delas e também aprendê-las para sermos tocados por elas.
Ocorre que essas considerações, de uma maneira ou de outra, frequentemente me levam a nelas mergulhar, sobretudo quando volto a refletir sobre os problemas das artes plásticas de hoje em dia, que têm como uma de suas características o não-fazer, ao contrário das manifestações anteriores fundadas precisamente no saber fazer.
Mas, como a arte não é somente técnica, não basta aprender a fazer; é necessário possuir uma qualidade especial que se costuma designar como talento. Não se sabe muito bem o que seja isso, mas é certamente uma qualidade que possibilita ao indivíduo apreender o que diz a música ou a pintura ou a poesia e até mesmo expressar-se por meio delas.
Atrevo-me a me pôr como exemplo para tentar esclarecer melhor o que penso. A minha não era uma família de artistas e, por isso mesmo, não havia em nossa casa obras de arte, senão as de caráter popular. Mas quando vi, pela primeira vez, uma reprodução da "Mona Lisa", fiquei encantado. Mais tarde, deparei-me com um pintor retratando, numa tela, o casario do bairro e tive vontade de fazer o mesmo. E assim, aos poucos, fui me familiarizando com esse tipo de arte que, cada vez mais, à medida que a conhecia melhor, mais me fascinava. Gostava de música, gostava de literatura, mas não me encantavam tanto quanto a pintura. Depois, descobri também a poesia e a ela me entreguei.
Até onde consigo entender, o que me possibilitou essa identificação foi a linguagem específica que essas artes são. Ninguém ensinou Mozart a gostar de música; menino ainda, foi tocado pelo que ela expressava e que correspondia a sua necessidade de expressar-se, ou seja, acrescentar ao mundo novas belezas melódicas. Fenômeno semelhante ocorreu com Goya, que, menino, esboçava nas placas de pedra da margem da estrada seus delírios gráficos. Mas isso não acontece só com os gênios; acontece com qualquer artista.
Como disse, essas considerações me vieram a propósito da chamada arte contemporânea, que não se apoia necessariamente numa linguagem. Não por caso, o precursor desse tipo de expressão, Marcel Duchamp, afirmava que "será arte tudo o que eu disser que é arte". Por isso, elegeu um urinol como obra de arte e, depois, um gadanho.
Hoje, os artistas contemporâneos fazem o mesmo quando colam um tubarão numa tela ou um esqueleto de gato. Noutras palavras, esse tipo de arte dispensa o domínio de uma linguagem, uma vez que tais artistas não fazem a obra, apenas se valem das coisas que existem e que não foram feitas por eles, como um amontoado de cadeiras ou de garrafas ou do que for.
Para mim (e para os que pensam como eu), chamar de arte o que não é fruto da elaboração de uma linguagem torna-se difícil, até mesmo impossível. Não se trata de exigir que a realização artística tenha de obedecer a normas e princípios, o que no passado definiu a obra de arte. Desde a revolução impressionista, no final do século 19, isso foi abolido, passou-se a valorizar a liberdade criadora e a inovação. Foi o que abriu caminho para esta supervalorização da expressão eventual sobre a elaboração da linguagem. Esse fato está ligado à desvalorização do trabalho artesanal em face da hegemonia das tecnologias industriais, que caracteriza a época atual. No fundo, considerar que a criação artística dispensa a elaboração de uma linguagem é aceitar que a arte acabou.
Uma mancha, um graveto são expressões, porque tudo é expressão, mas nem toda expressão é arte. Quando evoco as obras-primas de um Da Vinci ou de um Cézanne, só posso lamentar que se pretenda apresentar como obra de arte o que não passa de mera "sacação", descartável como os produtos comerciais de hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário