- O Estado de S. Paulo
Toda sociedade é continuamente corroída por conflitos individuais e coletivos. É por isso que o Estado, tendo como uma de suas missões fundamentais a manutenção da ordem, não se pode apoiar exclusivamente na força. Entre a estrutura social e o poder público sempre há uma “ponte”, quero dizer, um conjunto de ideias e símbolos mediante o qual a sociedade se vê e diz como quer ser num futuro não muito distante.
O conjunto de ideias a que acima me referi é o que os discípulos de Max Weber designam como “princípios de legitimidade” e os marxistas, como “ideologia”. A expressão “projeto nacional”, muito difundida no Brasil, sugere algo intelectualmente “trabalhado”, subestimando a contribuição anônima do povo para a formação de tais ideias – daí me agradar mais a expressão “filosofia pública”, cunhada pelo jornalista americano Walter Lippmann.
Neste momento em que o Brasil começa a se livrar de uma tralha ideológica acumulada ao longo de três décadas, penso ser útil pôr em relevo algumas etapas e aspectos de nossa “filosofia pública”, remontando aos anos 40.
Valendo-se de contribuições de vários escritores e artistas (que não necessariamente a apoiavam, ça va sans dire), a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) estimulou a difusão de uma imagem idílica de um país pacífico, que não fazia a menor questão de ser governado democraticamente. O que assegurava nosso aconchego tropical não era a igualdade de oportunidades, conceito próprio do liberalismo vigente nos países capitalistas avançados, sempre sujeitos a conflitos “artificiais”, mas a própria estrutura de oportunidades, notadamente nosso enorme estoque de terras, ou seja, o fato de que entre nós, “em se plantando, tudo dá”.
“Corrigindo” a figura do “homem cordial” proposta por Sérgio Buarque de Holanda, o poeta Cassiano Ricardo, diretor da Folha da Manhã, órgão oficial do regime estado-novista, escreveu que não se tratava propriamente de cordialidade, mas de “uma bondade por temor de Deus, por ausência de atritos econômicos, por mestiçamento conciliador de arestas psicológicas e raciais, por índole herdada do português, pela soma de tendências contrárias mas coincidentes na direção de certos objetivos, por euforia espacial, por sentimento de hospitalidade provindo do aborígine, por nenhuma filosofia sobre o destino”.
Nos anos 50, uma nova “filosofia pública” se delineia. Com a industrialização e a urbanização, nossa sociedade tornava-se conflituosa; as “arestas” começavam a machucar, mas não havia motivo para desesperança. Bem ao contrário, as dificuldades aumentavam porque havíamos de fato embarcado no milagroso trem do desenvolvimento econômico. Luís Costa Pinto, um dos principais sociólogos da época, escreveu: “O desenvolvimento cria problemas que só mais desenvolvimento pode resolver”. E não há que esquecer: vivíamos a democracia sorridente de Juscelino Kubitschek e de um sentimento nacional que se adensava graças à quantidade de talento que despontava na música, nas artes, no futebol...
Interrompida pela crise de 1961-1964, a democracia sorridente desembocou no golpe de 1964. Em seus estágios iniciais, o regime militar tratou de se legitimar invocando o combate “ao comunismo e à corrupção”, mas já a partir de 1967 a “filosofia” voltou a ser desenvolvimentista. A legitimidade do poder e a integração da sociedade passaram a depender estreitamente do crescimento econômico e de um nacionalismo vagamente redefinido como aspiração ao status de potência (o “Brasil Grande”). Como filosofia pública, era pouco, até porque o poder militar passou a ser questionado por violações dos direitos humanos e, de um modo geral, por seu caráter autoritário.
Uma terceira etapa se configura nos anos 80. A partir desse ponto, que ganhou corpo na Constituinte de 1987-1988, a nota dominante passou a ser redistributiva. Urgia reduzir a pobreza e as desigualdades. A nova imagem era a de uma sociedade profundamente desigual e, por isso, tensa e crescentemente violenta. Era, pois, imperativo promover uma enérgica ampliação de direitos, adequadamente lastreados em garantias constitucionais e judiciais.
O problema foi, por um lado, que as demandas sociais subjacentes na sociedade haviam se intensificado enormemente e passado a contar com uma elite política, cultural, clerical, etc. capaz de as vocalizar com veemência; e, por outro, que, ao mesmo tempo, o precedente modelo de crescimento econômico, iniciado nos anos 50, entrara em colapso. Desde a virada dos anos 80 para os anos 90, o País vivia a crise da dívida externa e um quadro interno de estagflação e crescente desemprego.
Na primeira metade dos anos 90, o Plano Real estabilizou a economia, interrompendo a descomunal perversidade das inflações altas que se embutira no modelo de crescimento econômico desde o início dos anos 60. Abria-se, assim, a possibilidade do efetivo abandono de tal modelo, mantendo a ênfase redistributiva insculpida na Constituição de 1988, sem dúvida, mas em bases modernas e sustentáveis, devidamente ancorada em reformas estruturais.
Desgraçadamente, o que os treze anos e meio de Lula e Dilma Rousseff nos brindaram foi justamente com o oposto. A busca irrealista do crescimento acelerado resultou numa recessão sem precedentes. A redução da pobreza (mais de 50% da sociedade se alçara à classe média, lembram-se) hoje colide com o trágico quadro de 11 milhões de desempregados. A Petrobrás de joelhos e uma onda de corrupção quiçá sem paralelo no planeta vieram de lambuja. Como o morango da torta.
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*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor do Augurium Consultoria, membro da Academia Paulista de Letras, é autor do livro 'Tribunos, Profetas e Sacerdotes: Intelectuais e Ideologias no Século 20' (Companhia das Letras)
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