Em livro escrito no calor dos acontecimentos, o filósofo examina a culpa alemã sem se deixar tomar pelo lado emocional
Caio Sarack*, O Estado de S.Paulo/Aliás
Se o leitor estivesse sob a pressão dos acontecimentos e conseguisse ainda sentir o ar espesso pela fuligem da guerra, daria conta de acalmar as paixões diante das pilhagens, dos escombros e dos mortos? Karl Jaspers, em seu A Questão da Culpa – A Alemanha e o Nazismo, publicado pela editora Todavia, trata no calor dos meses que seguiram o final da 2.ª Guerra Mundial sobre uma das heranças do Terceiro Reich: a culpa do povo alemão. O nazi-fascismo deixava espalhados pelo mundo intelectuais judeus e não judeus; tentavam expor o absurdo da destruição arquitetada pelo regime totalitário. Karl Jaspers, junto de Hannah Arendt, Theodor Adorno, Wilhelm Reich e tantos outros, buscavam descrever o caso alemão como desdobramento que ultrapassava as noções de nação, língua ou território; como, portanto, um sinal do alcance implosivo das crises econômicas internacionais e processos de esfacelamento da autonomia de pensamento dos homens e mulheres.
Quando enunciamos a palavra “culpa”, vários matizes cobrem nossos pensamentos: indireta, direta, moral, objetiva, subjetiva... Os adjetivos são muitos, mas a sensação de embrulho no estômago num só gesto enche de significado o verbete. Em suas palestras, Jaspers tenta acalmar as emoções e os ressentimentos; ao buscar na tão evidente culpa que sobrevoava o céu alemão do pós-guerra, o filósofo perguntava-se como poderíamos esclarecer o limite intuitivo (ainda que complexo) que separava todos os alemães dos condenados de Nuremberg: mesmo que não confundamos o criminoso da SS com o alemão médio das décadas de 1930 e 40, persiste sobre todos uma responsabilidade pelos crimes que foram cometidos. E agora, Jaspers? A guerra acabou. As paixões enrijeceram o coração do homem e da mulher, o Mal radical já foi descoberto. Ajuizar já não pode? Ajuizar não é inevitável?
“Em sua configuração especial, a miséria hoje é bem diferente. Certamente todos têm preocupações, limitações severas, sofrimento físico, mas trata-se de algo bem diferente: (...) Todos tendem a interpretar grandes perdas e sofrimento como sacrifício, mas a razão desse sacrifício tem interpretações tão abissalmente distintas que num primeiro momento isso separa as pessoas” (p. 15). Se analisarmos o sentido jurídico do crime, vítima e criminoso assumem pesos diferentes na balança da Justiça; o caráter isento de uma deusa que, de olhos vendados, deixa a materialidade das provas julgarem o réu e assegurar a vítima, já não encontra mais suporte e se perde em meio aos escombros do Holocausto e dos crimes de guerra. Como avalia Jaspers, no Estado moderno todos agimos politicamente, da militância explícita ao silêncio da indiferença: se assim é, como podemos evitar a culpabilidade de um povo inteiro?
Se não me sinto representado por nenhum dos candidatos, se a disputa política não tem eco nas minhas convicções políticas e mesmo assim, não participante, sou responsável, como posso ser cidadão alemão e não compartilhar a culpa de todos os assassinatos e violências que o Estado Moderno Alemão, com suas maiúsculas, torna-me inevitavelmente corresponsável? Não havendo um “fora” do Estado moderno, de que modo o cidadão alemão poderia expurgar a culpa?
Jaspers precisa compreender e para isso é necessário que a razão assuma o lugar das emoções. Qual o custo, no entanto, de pedir calma a alguém que viu todo traço de humanidade de seus filhos e filhas, pais e mães desfigurados nos corpos raquíticos dos campos de extermínio? A capa verde-clara e geométrica desta edição da Todavia parece me precaver de um intenso contraste: a descrição calma dos mais abjetos argumentos dados durante o ano que seguiu a capitulação da Alemanha hitlerista, a análise quase cartesiana da tipologia da culpa nos colocam entre o furor emotivo e o vigor intelectual. A ordem das instituições entra em choque com a ordem do humano e deixa as duas à míngua, o que traz ainda mais força ao contraste do livro – “pertencermos a um povo de um Estado irremediavelmente derrotado, entregues à graça ou à desgraça dos vencedores; a falta de um chão comum que nos una a todos; a dispersão: cada um essencialmente só tem respaldo de si mesmo e, ainda assim, está desamparado. Comum a nós é a ausência de comunidade.”
Como dizê-lo em frases ordenadas? Como se reconhecem as perdas uns dos outros? As palestras de Jaspers partem da avaliação material da guerra, das análises dos eventos históricos e dos dilemas morais que foram condicionados por esse contexto para poder experimentar a esperança de uma comunidade entre os homens e mulheres. Se repararmos bem, o diálogo que trava nessas páginas não é a exposição de alguém que quer delimitar o assunto, mas o tatear de quem se encontra imerso nas contradições da ressaca bélica dos anos 1940; é um gesto para si, mas que só é possível de ser feito com o outro – o verdadeiro diálogo, Jaspers nos faz crer, é o espaço de aparição daquilo que nos comunica e nos comunga.
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*Caio Sarack é mestre em filosofia pela FFLCH-USP e professor do Instituto Sidarta e do Colégio Nossa Senhora do Morumbi
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