terça-feira, 1 de maio de 2018

Míriam Leitão: Inimigo meu

- O Globo

Sempre haverá tensão entre Estados Unidos e China, mas o que está acontecendo é conjuntural e determinado pelo pensamento limitado do presidente Trump. Não é a reedição da Guerra Fria, porque, ao contrário da relação EUA-URSS, as duas potências agora são interdependentes. Ontem a China avisou que não aceitará duas exigências do governo Trump e isso elevou o temor de uma guerra comercial.

Mesmo sendo temporário e conjuntural, preocupa, porque um conflito comercial entre as duas maiores potências reduz o crescimento mundial e não favorece ninguém. Pode ajudar pontualmente o Brasil pela elevação dos preços de algumas commodities ou da demanda por algum produto, mas a tensão entre China e Estados Unidos não estimula a economia global.

O jornal “The New York Times” trouxe ontem a informação de que os chineses pretendem endurecer em dois pontos impostos pelo presidente Donald Trump: a obrigatoriedade de cortar US$ 100 bilhões no déficit comercial entre os dois países, e a redução dos estímulos da política industrial chinesa em favor de novas tecnologias como inteligência artificial, semi-condutores, carros elétricos e aviões. Depois de um seminário de três dias entre autoridades chinesas e consultores, a decisão foi de não aceitar as duas imposições.

Dizer “não” antes de começar uma negociação — a reunião bilateral será esta semana — é um ato de esperteza. Mas de qualquer maneira reduzir o comércio nessa proporção e ainda interromper um projeto local é mesmo difícil.

De acordo com dados do governo americano, nos dois primeiros meses de 2018, o déficit comercial com a China chegou a US$ 65,2 bi, ou 14,5% a mais que no mesmo período de 2017. O ano passado havia fechado com um rombo de US$ 375,2 bi. O que Trump propõe é uma redução mandatória por parte da China desse déficit em US$ 100 bi. Isso o levaria de volta aos níveis de 2010, quando os americanos venderam US$ 91,9 bi e compraram US$ 364,9 bi da China. Em 2017, a corrente de comércio estava em outro patamar. Mais integrados ao parceiro asiático, os EUA exportaram US$ 130,3 bi e importaram US$ 505,5 bi da China.

A visão de Trump é de déficit como prejuízo do país, como se fosse uma empresa. Na verdade o comércio tem inúmeros lados, e a importação de produtos chineses tem toda uma rede de interesses dentro da economia americana. A mais óbvia delas é a inflação baixa mesmo em período de retomada do crescimento.

Os maiores volumes das exportações americanas vêm exatamente de produtos de maior valor agregado e alta tecnologia. OS EUA embarcaram US$ 16,2 bi em aviões e equipamentos aéreos para o parceiro asiático em 2017. A exportação de veículos de passageiros somou US$ 10,5 bi. Fabricantes americanos venderam US$ 6 bi em semicondutores para a China, mais US$ 5,4 bi em máquinas industriais. Entre as commodities, os destaques foram os US$ 12,3 bi em soja e os US$ 4,4 bi em petróleo.

Da China, os EUA compraram US$ 70,3 bi em celulares e outros bens residenciais em 2017. No topo da lista das importações também aparecem os US$ 45,5 bi em computadores e os US$ 31,6 bi em acessórios para computadores. Outros US$ 33,4 bi foram gastos em equipamentos de tecnologia, mais US$ 26,7 bi em brinquedos e produtos esportivos e US$ 24,1 bi em vestuário. Os produtos de aço e ferro são pouco relevantes na lista, somaram US$ 4,9 bi.

O governo chinês argumenta que o desequilíbrio nas contas entre os dois países é provocado pela diferença da taxa de poupança. Os chineses poupam dois quintos da sua renda e os Estados Unidos são uma sociedade consumista. O governo americano diz que o déficit é provocado por práticas desleais de comércio. Provavelmente, os dois têm razão. Os americanos não poupam, e a China subsidia suas exportações, os bancos estatais fornecem empréstimos baratos para as empresas, o custo de mão de obra é baixo. Mas Trump está estimulando ainda mais o consumo, e o consumidor americano se aproveita dos subsídios chineses quando compra produtos com preço baixo. É difícil separar as duas economias porque elas já se misturaram demais ao longo dos anos de intenso comércio bilateral e investimentos chineses nos Estados Unidos.

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