- O Globo
Eu tinha acabado de fazer dez anos de idade, quando o Brasil, sede daquela primeira Copa do Mundo do pós-guerra, enfrentou na final o Uruguai. Parece que tinha mais de 200 mil espectadores no recém-inaugurado Maracanã. Infelizmente, eu não era um deles. Meu pai não curtia futebol e, para conhecer o Estádio Municipal, tive que esperar um tio tarado pelo esporte chegar de Maceió, uns poucos anos depois. Tricolor fanático, o tio me levou para ver Fluminense e Grêmio, graças à minha mentira oportunista de que era torcedor do clube das Laranjeiras. Foi duro comemorar os gols com naturalidade, mas “nós” ganhamos o jogo.
Naquele inverno carioca, mais precisamente no dia 16 de julho de 1950, acompanhei a final da Copa pelo rádio, ouvindo o jogo narrado por Oduvaldo Cozzi. Eu não entendia como alguém podia ser tão sereno, capaz de relatar os mais perigosos ataques uruguaios sem alterar a voz, sem dizer alguns palavrões diante do perigo que rondava nossa meta. No início do segundo tempo, Friaça abriu o placar, e todo o Brasil começou a comemorar. Todo o Brasil e eu também, naquela sala sombria na rua São Clemente, quase esquina da Matriz, onde iríamos morar uns quatro ou cinco anos depois.
Depois veio a tragédia. Nos últimos quinze minutos de jogo, o Uruguai virou o placar para 2 a 1 e ganhou a Copa daquele ano. Assim que o juiz apitou o final, desliguei o rádio e fui para a varanda, chorar sozinho o meu desgosto. Até hoje não sei dizer se foi de fato assim ou se isso foi uma ilusão que alimentei esses anos todos, mas daquele momento em diante, até o fim da noite, não vi um só carro passar em frente à nossa casa, num dos trechos mais movimentados da movimentada Rua São Clemente. Nem carro, nem ônibus, nem bonde. Era como se a cidade tivesse parado de respirar para sofrer sua dor em silêncio, sem algazarras ou suspiros.
Sempre me disseram que foi assim que o Maracanã se comportou depois da derrota, num silêncio ensurdecedor dos mais de 200 mil prováveis torcedores que não queriam acreditar no que acabavam de assistir. Um golpe fatal do qual não arredavam pé, curtindo a rara desgraça como quem curte uma joia rara que lhes fazia mal, um prato indigesto que nunca mais teriam ocasião de experimentar. Era como se os brasileiros estivessem tendo uma experiência terrível que desejavam curtir e proteger para não esquecer. E, quem sabe, não repetir, não sentir o mesmo que estavam sentindo agora. Uma espécie de martírio em benefício de uma salvação qualquer.
Somente outro dia fiquei sabendo que o herói daquela tarde, o centerhalf Obdulio Varela, comandante do feito uruguaio, saíra de seu hotel carioca naquela noite para passear incógnito pela cidade e voltou arrependido do que fizera no Maracanã. Segundo ele mesmo, Obdulio ficara impressionado com o sofrimento nas ruas e nos botecos por onde passara, a autoflagelação que todos se impingiam, como se o país e sua gente não servissem para mais nada. Aquele povo não merecia aquela infelicidade toda. Essa dor não nos deixou por muitos anos. Curtimos uma espécie de fatalidade do fracasso, nosso único destino possível. O desastre esportivo havia se tornado um caráter nacional do qual não tínhamos como fugir, fazia parte de nossa natureza. Um caráter que se reproduzia na política, quando Getúlio se matou; na economia, quando a inflação tomou conta dela; no cotidiano de todos nós, que acabávamos considerando secretamente aquilo tudo normal. Mesmo que a namorada nos deixasse, teria sido por causa de nossa fragilidade como povo. A certeza de nosso insuperável desastre explicava todos os fracassos públicos ou privados. Perto dessa tragédia histórica, o 7 a 1 de 2014 não passou de uma chanchada.
Quase uma década depois, eu tinha acabado de fazer dezoito anos, quando o Brasil voltou da Suécia com seu primeiro título de campeão mundial. Todos nós ouvíamos os jogos pelo rádio, não tinha outro jeito. Mas quando o time de Garrincha, Pelé e Nilton Santos chegou ao Galeão, eu estava fisicamente lá com meus amigos Marco, Paulinho e Clarêncio, bebendo cerveja quente na garrafa e esperando uma chance de saudar os campeões do mundo. Nós.
Depois de 1958, ainda ganhamos mais quatro vezes, fomos pentacampeões. Mas o futebol continuou infernizando nossas vidas. Cada vez que perdemos, mesmo que seja evidente que o juiz nos tenha roubado, botamos sempre a culpa na mesma origem da corrupção dos políticos, da recessão de nossa economia, da bagunça cívica em que vivemos, do desemprego, da desordem e da violência no país. A culpa é sempre de nossa incompetência como povo, uma incompetência totalizante, sem exceções. E como o país nunca esteve tão mal, é inútil torcer por nós nessa melancólica Copa da Rússia.
Para nós, a Copa começa hoje, domingo, de manhã. Estarei grudado na televisão, a torcer por Neymar e os outros, brasileiros como eu, competentes como espero que sejamos todos, se formos capazes de acreditar nisso. Pois eu acredito. E torço.
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Cacá Diegues é cineasta
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