- Valor Econômico
Sem que a posse de armas nucleares seja deslegitimada, quais as chances de ampliação real da democracia?
Mesmo o cabal sucesso de Emmanuel Macron na cúpula de Biarritz foi insuficiente para contrariar a tese de que arranjos do tipo G-7 e G-20 pouco têm contribuído para a governança global. Com certeza, ajudam bastante na melhora dos indispensáveis diálogos entre os chefes de Estado e seus auxiliares, como atestou a visita dominical do chanceler iraniano Mohammad Javad Zarif. Mas, G-7 e G-20 estão longe das decisões mais estratégicas sobre a sustentabilidade do mundo.
O cerne do jogo de poder internacional se dá em panelinha similar, mas que é muito mais coligada e cuja sigla nem mesmo começa por "G". Pois é a própria existência da humanidade que está na dependência do soturno "P5" (permanent five), o conchavo entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (China, Grã-Bretanha, França, EUA e Rússia). São estas cinco potências que abominam o Tratado de Proibição das Armas Nucleares (TPAN), adotado em 7 de julho de 2017 pela Assembleia Geral da ONU.
Os representantes de 64 Estados foram tangidos pelos do P5 a boicotar a votação do TPAN, garantida por outros 124. Daí o estrepitoso placar de 122 a favor e dois foras - voto contra da Holanda e abstenção de Cingapura. Mais: o tratado está ratificado por 25 das 70 nações que já o assinaram. Se outras 25 também o ratificassem, entraria em vigor três meses depois.
Não por outra razão, o P5 está jogando com brutalidade nos bastidores, enquanto desvia a atenção da opinião pública para alguns de seus muitos conflitos menores e em outras esferas, como a tributária, a comercial e a monetária. Chega a fazer das tripas coração para que seja esquecida a grave mensagem que Stanley Kubrick lançou em 1964, com seu sétimo longa - o sarcástico 'Dr. Strangelove' - que por aqui virou 'Dr. Fantástico'.
O filme não poderia ser mais didático ao escancarar o quanto a célebre doutrina da "dissuasão" jamais foi levada a sério pelos dois protagonistas da Guerra Fria, URSS e EUA. Em vez disso, montaram a dita "Máquina do Juízo Final" (Doomsday Machine), ameaça que retornou com tudo desde que a incerteza sobre a eclosão de uma guerra nuclear voltou ao nível dos treze aterrorizantes dias de outubro de 1962, os da "Crise dos mísseis de Cuba".
É o que explicaram dois dos mais respeitados experts, na edição da revista Foreign Affairs, de 6 de agosto. No artigo "The return of Doomsday", o ex-senador Sam Nunn e o professor Ernest J. Moniz realçam os fatores que mais elevaram as incertezas existenciais decorrentes de real possibilidade de tragédia nuclear: crescente desconfiança dentro do P5, em razão de novos conflitos geopolíticos, quando as novas armas hipersônicas se combinam aos avanços da inteligência artificial.
Daí a grandeza dos 122 governos que já optaram pelo banimento da atroz imoralidade que é a posse de arma nuclear. Ideia que engatinha desde 1997, quando a Costa Rica submeteu à ONU uma ainda precária Convenção sobre Armas Atômicas (NWC), redigida por entidades da sociedade civil lideradas pelos juristas do 'Lawyers Committee on Nuclear Policy' http://lcnp.org/
A iniciativa não prosperou, mas foi substituída, dez anos depois, por real proposta de proibição, em grande parte devido a decisivo impulso dado pelos médicos. Organizados desde 1980 no IPPNW (http://www.ippnw.org/), , foram esses profissionais que, no seu congresso anual de 2006, em Helsinki (Finlândia), fundaram o que viria a se tornar testa de ponte: a Campanha Internacional pela Abolição das Armas Nucleares (Ican), Prêmio Nobel da Paz em 2017 (http://www.icanw.org/).
De 2006 a 2017, a Ican se fortaleceu principalmente pela adesão de parceiros-chave, como a Cruz Vermelha e o Instituto de Pesquisa da ONU sobre Desarmamento (Unidir). Simultaneamente, sério trabalho lobístico junto aos corpos diplomáticos permitiu que a Ican promovesse três profícuas conferências, que culminaram na troca do fraco NWC pelo radical TPAN. Em 2013, representantes de 120 nações foram a Oslo (Noruega). No ano seguinte, 148 a Naiarite (México) e 158 a Viena (Áustria). E foi nesta terceira, em dezembro de 2014 - quando 127 Estados subscreveram "petição humanitária" - que o Papa proclamou ter chegado "a hora da abolição".
Tal hora não chegou e, com certeza, ainda demorará demais. Tanto ou mais que uma nova onda de expansão democrática. Porém, sem que a posse de armas nucleares seja deslegitimada, quais serão as chances de consistente ampliação da democracia? Mais: como democratizar sem pôr fim a senso comum tão negligente sobre a maior das incertezas existenciais, a autoaniquilação da espécie humana?
Mesmo que, por várias razões, o TNP jamais entre em vigor, ele é excelente recurso político para que o P5 seja impelido a erigir as instituições de uma verdadeira dissuasão. Especialmente depois que Trump e Putin liquidaram o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF), trunfo que o mundo devia, desde 1987, aos entendimentos entre Reagan e Gorbachev.
*José Eli da Veiga, professor sênior da USP
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