- Folha de S. Paulo
Como dom Quixote, Bolsonaro tenta transportar fantasias para a vida real
Numa das mais conhecidas passagens de “Dom Quixote”, o herói que dá título ao livro toma um conjunto de moinhos de vento por gigantes e, apesar de alertado da ilusão por seu escudeiro, Sancho Pança, se lança em carga para enfrentá-los. O fidalgo e seu cavalo, Rocinante, são derrubados por uma das pás.
Sancho corre em socorro do mestre e o recrimina pelo engano. O cavaleiro da triste figura reconhece que estava diante de moinhos, mas insiste em seu delírio, afirmando que um mago transformara os gigantes nas engenhocas apenas para roubar-lhe a glória de derrotá-los.
Na literatura, o descompasso entre as ilusões do protagonista e a realidade produz um efeito cômico; no planeta Terra, as consequências tendem a ser menos risíveis. Como o leitor já deve ter intuído, falo de Jair Bolsonaro.
Suas ideias delirantes sobre um país dividido entre comunistas e homens de bem e em que o aquecimento global é uma mentira destinada a nos roubar a Amazônia até que lhe serviram bem durante a campanha, que tem mesmo uma dimensão ficcional. Mas, quando, na Presidência, tenta levar essas fantasias à realidade, as coisas já não funcionam tão bem.
A reação mundial às políticas ambientais de Bolsonaro, potencializada pela retórica beligerante do presidente, é um bom exemplo de choque de realidade. Nosso dom Jair encontrou sua pá de moinho —e caiu do cavalo. Ainda que por breves instantes, Bolsonaro teve de recuar de seu insensato negacionismo e, premido pela ameaça de boicote, aceitou que é preciso combater os incêndios. Mas, logo em seguida, um pouco como Quixote pondo a culpa no mago, o presidente sugeriu que foi o pessoal do Ibama que pôs fogo na floresta e embarcou numa onda de comentários ofensivos à mulher de Macron.
No final do romance, depois de bater inúmeras vezes contra a realidade, dom Quixote recobra a razão, mas só quando já estava a um passo da morte.
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