- Folha de S. Paulo
O prefeito do Rio tem de ser um homem do mundo, não um cambista de entradas para o céu
Em, digamos, 1968, Marcelo Crivella tinha 11 anos. É fácil visualizá-lo. Camisa branca abotoada nos punhos e no pescoço. Calça de tergal cinza. Sapatos e meias pretos. Cueca de pano. Caspa. Sempre o último a ser escolhido na pelada do bairro e, mesmo assim, como goleiro. Sem namorada —nenhuma garota de sua rua teria estômago para beijá-lo. E, nos anos seguintes, virgem de todas as tentações ao alcance de sua geração —sacanagem com a vizinha na escada de serviço do prédio, sexo à milanesa na praia deserta à noite e, nos bailes de Carnaval, sarongue ou fantasia de árabe sem nada por baixo.
Embora tenha passado a vida atracado a um livro cheio de poligamias, adultérios e incestos —sua cabeça devia ferver ao lê-lo—, Crivella não pecou o suficiente para ser prefeito do Rio.
Esta é uma cidade especial. O gaúcho Alvaro Moreyra a comparou a uma mulher que, a cada século, ficava mais jovem —a severa matrona de 1502 se tornara a melindrosa dos anos 1920, flertadora e fatal. O paulista Ribeiro Couto, que também se apaixonou por ela, chamou-a de “cidade da graça e do vício”. E, na mesma linha e época, o pernambucano Olegario Marianno a descreveu como “Cidade do gozo e do vício/ Flor de vinte anos, rosa de desejo/ Corpo vibrando para o sacrifício/ Seios à espera do primeiro beijo”.
O prefeito do Rio tem de ser um homem do mundo, da noite, da vida —não um cambista de entradas para o céu. O céu do carioca é pagão e inclui o satanismo, a nudez, o contato físico, a comunhão de crenças, cores e sexos.
Ao mesmo tempo em que, sob sua incúria, a cidade fisicamente se desfaz, Crivella parece querer fechar o Rio como polo de visitantes e investimentos. Ele não é só o pior prefeito desde que o cargo se chamou assim, em 1889. É o pior desde que dom João 6º o criou, com o nome de intendente, em 1808. Para o Rio, só o impeachment salva, cura e liberta.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues
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